Universo Xamânico

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Guardiões do Sobrenatural

Nosso estudo se inicia no tempo dos ancestrais originários em comunhão com a natureza, com os espíritos dos Apus (Montanha Sagradas) e com os dos seus antepassados. Suas sombras evanescentes podem ser vistas aqui e ali, à luz bruxuleante das chamas de uma fogueira, tochas ou lamparinas, as mesmas que iluminavam murais com cenas litúrgicas e davam vida a animais espirituais e outras forças sobrenaturais. Com eles percorremos essas galerias subterrâneas e esses espaços cerimoniais de outro mundo, Sechin, Chavín de Huantar, Huaca de La Luna, Huaca Cao, Gran Pajeten, as Chullpas de los Pinchudos, a Tumba de Sípan ou a laguna de los condores, las Huaringas… entre tantas outras huacas (locais de poder) nos andes peruanos. Com este artigo queremos aproximar e revelar o resultado de nossas observações sobre esses especialistas, que entram em transe para curar doenças, provocar mudanças climáticas, prever acontecimentos, entrar em contato com ancestrais e espíritos de animais e plantas.

Os trabalhos de campo levado a cabo há mais de duas décadas, e as expedições realizadas ao longo dos Andes, da costa pacífica, do Alto Amazonas, no norte, ou na bacia amazônica, todas elas enquadradas no território peruano, para verificar in situ a sobrevivência de conhecimentos milenários, tornaram possível documentar os testemunhos vivos de culturas que se acreditava estarem perdidas para sempre. Tudo isto nos dá uma perspectiva bastante ampla sobre um património cultural tão complexo como o da religião, das crenças, dos ritos e da mitologia, que os xamãs destas áreas agrestes ainda mantêm vivo após milénios de existência, inacessível e pouco ou nada estudado no América do Sul.

Em primeiro lugar, vamos definir o que são culturas tradicionais, uma vez que foram os repositórios ao longo do tempo deste conhecimento antigo. Poderíamos defini-los como “aqueles que nos separam das dimensões mítico-religiosas da realidade cotidiana, uma vez que os mitos são considerados histórias sagradas e verdadeiras, e assumidos como modelos para toda a atividade humana. Seu sistema ritual é funcional e ativo, e permite o controle das relações entre o divino e o humano. A sua identidade cultural original não foi alterada nos seus traços fundamentais, apesar da influência recebida da cultura europeia.

Dizia Hegel que se a realidade pode parecer irracional, para compreendê-la necessitaremos inventar alguns conceitos também irracionais. Certamente esta frase possui uma nuance perturbadora. O mundo que vamos nos introduzir, é o dos xamãs, e, portanto, o das crenças é estranho e misterioso. E o xamanismo nos coloca diante de referências muito diferentes do que representa a nossa cultura, esse acúmulo de conhecimento que chamamos de mundo.

Como preâmbulo, digamos que, depois de participarmos de diversos rituais e cerimonias com xamãs, feiticeiros ou curandeiros, no Peru, México, Angola, Haiti, Colômbia, Equador, Bolívia, e outros países, podemos ver a surpreendente e secular continuidade temporal de tais práticas e sua imutabilidade. Parece que os conceitos mágico-religiosos e o próprio cerimonial eram à prova de fogo ao desgaste do tempo. Tanto os originários como os dos nossos dias continuam utilizando objetos similares em suas sessões, com o fim de atrair e armazenar a energia mística. Os talismãs e amuletos, elementos fundamentais dos curandeiros, são bons exemplos neste sentido. Tenhamos em conta que o xamanismo não é simplesmente bruxaria ou curandeirismo numa direção convencional; pelo contrário, diríamos que é uma tentativa de concentrar e manipular certas forças da natureza que estão mais próximas do religioso do que do científico. Portanto, todo verdadeiro xamã também pode ser um bruxo ou feiticeiro. Porém, o mesmo não acontece ao contrário.

Os xamãs com quem convivemos longos períodos, em diferentes geografias do Peru, são herdeiros de uma rica tradição e sabedoria ancestral transmitida boca a boca, de geração em geração, que permaneceu praticamente inalterada. Assim detectamos, tanto no Peru arcaico e no atual, práticas muito semelhantes, porque o que está subjacente aos fenômenos do xamanismo é direta e nitidamente a própria inserção do ser humano na vida e no cosmos.

Estudos recentes sobre alguns assentamentos do antigo Peru destacaram a sobrevivência de práticas e crenças ancestrais que resistiram cultural e temporalmente falando. Insistimos que os xamãs de nossos dias são os continuadores epistemológicos dos mesmos segredos empíricos de seus antepassados. Em praticamente todos os povoados pré-hispânicos existiam personagens vinculados ao curandeirismo, os sortilégios, ao sacerdócio, a adivinhação e a feitiçaria.

No Império Chimu, estes especialistas, chamados oquetlupuc, eram tratados com grande respeito e seus serviços generosamente recompensados. No entanto, se um paciente morresse durante o tratamento, o curandeiro era chicoteado até a morte. Em seguida, seu corpo era amarrado ao cadáver do paciente, que era devidamente enterrado, enquanto o corpo do curandeiro era deixado na superfície para ser devorado por aves de rapina.

A ação ritual do xamã, segundo diversos achados de objetos, é muito interessante através de evidências arqueológicas. Foram encontrados recipientes de cerâmica – pintados ou modelados –que representam curandeiros em atitude auscultatória, em transe completo, e até impondo as mãos em pacientes prostrados.

O surpreendente, já dissemos, é que não há diferenças entre a representação secular e a dos nossos dias. Também as chamadas chunganas, ou chocalhos rituais, assemelham-se às atuais na icnografia arqueológica comparativa, preservando mesmo o som característico e rítmico, identificando sempre os curandeiros ancestrais e as suas cerimónias, especialmente durante as orações e cantos repetitivos ou ícaros.

O fenômeno xamânico tem validade total. Não mentimos se garantimos que é o mais atual do ancestral. Neste artigo se pretende esclarecer alguns conceitos imprescindíveis para adentrar-se no complexo universo das práticas ritualísticas e terapêuticas dos curandeiros andinos do norte peruano. Não foi fácil coletar e classificar o material documental, etnográfico e arqueológico, para chegar até a alma da filosofia milenar e das contribuições culturais que se sucederam na História do Peru.

Devemos acentuar o enfoque religioso que o mundo andino tem e que forja as estruturas culturais da medicina tradicional, cuja antropologia considera a pessoa na sua totalidade indissociável, tanto física, psicológica e espiritual, e relaciona os conceitos de saúde e doença com equilíbrio entre todos eles, bem como com a harmonia que existe entre o ser humano e o ser universal. Em síntese, o procedimento da medicina tradicional atua em todos os níveis da pessoa, não só o físico. Um verdadeiro xamã é ao mesmo tempo um sacerdote, psicoterapeuta, um especialista no conhecimento das ervas e substâncias que curam. É médico e oráculo, já que isso é exatamente o que se espera dele a gente da cultural ancestral. A medicina tradicional é aplicada no norte do Peru por “curandeiros carismáticos”, como são denominados os xamãs nestas zonas, já que são eles os elegidos para executar os métodos para a cura do que podemos definir como síndromes culturais.

Resumindo, a tradição andina na atualidade é sincrética, já que mantem os padrões do pensamento religioso nativo pré-hispânico, ao mesmo tempo assume as características da religião cristã; tudo isso é parte inseparável da cultura andina. Os conhecimentos adquiridos sobre as culturas do antigo Peru, assim como os descobrimentos que se sucederam durante o transcurso dos séculos XX e XXI em matéria de icnografia, mitos e crenças, nos permitem realizar hoje um melhor uso das comparações etnológicas.

Mitos e rituais

No continente americano existiram diversas culturas que tinham um grande sentido artístico e técnico. Deram formas a diversos metais como ouro, prata, platina e o cobre, e imortalizaram com eles suas crenças e mitos.

As lagoas, consideradas úteros da terra pelos nativos, recebiam oferendas com o venerado metal e, nesse rito, suponha-se que as águas eram fecundadas. E os rios que nelas nasceram levaram fertilidade às lavouras. O ouro, era considerado a semente do Sol, ligava o mundo terrestre ao mundo superior, onde viviam os deuses, o mundo original antes do aparecimento do tempo e, com ele, da morte. Representava um precioso metal que, entre as culturas da América pré-colombiana, significava uma forma de comunicação e ponte com as divindades e com o outro mundo.

No Peru, ourives de diversas culturas, como Chavín, Moche ou Sícan, transformaram o ouro em seres fantásticos e mitológicos, e fizeram parte, junto com altas figuras, de suas cerimônias e posteriores acompanhamentos aos seus túmulos. O uso de máscaras rituais em diversas culturas, a ingestão de enteógenos, assim como as danças e cantos, permitiam ao ser humano regressar ao estado homem-animal para ter poder sobrenatural e acessar o centro do cosmos.

Festejavam a morte. Tanto esta, como a vida, eram para os povos pré-colombianos, em geral, uma viagem com diferentes etapas. Portanto, quando alguém morria, seu corpo era enterrado no meio de uma festa. Em suma, a ourivesaria pré-colombiana estava intimamente ligada às crenças do povo e tinha grande importância no culto funerário. O ouro uma vez trabalhado, servia de acercamento aos deuses, pois formava parte dos enxovais funerários para cobrir os rostos cadavéricos. As máscaras do valorizado metal acompanhava os seus portadores até sua jornada eterna. Bestas mágicas, jaguares e o homem-jaguar, um de seus principais seres mitológicos, em forma de dourados peitorais, assim como diversas figuras zoomorfas, formavam parte das cerimônias mais importantes.

Deve-se ressaltar também que no longo processo de surgimento de diversas culturas, durante dois mil e quinhentos anos, desde os primórdios de Chavín, os objetos de metal recolheram os conteúdos fundamentais dos grandes mitos e narrativas que aludem a divindades remotas e recorrentes – falconídeas, pumas e amarus ou serpente –, que mostram antigas tradições religiosas que, por vezes, proporcionam uma certa continuidade ideológica às sociedades andinas. É o caso da divisão do universo em três – o Hanan Pacha, o Kay Pacha e o Urin Pacha –, que, através dos tempos, levou à visão do mundo dos Incas, visão que atualmente subsiste em alguns das regiões mais tradicionais dos Andes peruanos.

É também importante salientar que as peças de metal reuniam diversas manifestações vinculadas aos mitos, como o esplendor da cor, do movimento e da música, como pode ser visto em objetos cuidadosamente trabalhados para projetar apenas essas impressões, que devem ter estado intimamente ligadas a rituais e cerimônias que hoje só podemos intuir à luz dessas joias. Dentro do patrimônio mitológico das sociedades indígenas do Peru é possível identificar, embora com certa dificuldade de compreensão, histórias especificas sobre as enfermidades e sua cura. A dificuldade reside no fato de que, em geral, os mitos contêm múltiplos núcleos de significados e funções.

Os mitos de cura, como podemos defini-los, contêm indicações mais ou menos específicas para curar as doenças que cada etnia identificou ao longo da sua história.

Por outro lado, para estes povos o contexto não é constituído apenas pelo ambiente natural que os rodeia, mas por múltiplas realidades intangíveis, com as quais os indivíduos mantêm relações ritualmente ordenadas. São outros mundos presentes na realidade cotidiana, domínio dos espíritos e ancestrais.

Quando as relações com esta entidade são alteradas, podemos nos deparar com situações que podem ser definidas como doenças. A importância destes mundos paralelos não reside apenas na possibilidade de causar enfermidades; para os povos indígenas, o conhecimento que lhes permite superar o estado de crise, tanto física como espiritual, vem do seu mundo mítico; são os ancestrais e personagens míticos do grupo, que no início dos tempos ensinaram os seres humanos a curar doenças.

Na cura xamânica, o especialista utiliza seu conhecimento do campo mítico para solucionar os problemas do paciente. Por isso, o uso do mito nas sessões de cura é diverso e variado, como fonte de conhecimento para o remédio de doenças específicas, como indicador para encontrar a solução para o problema do paciente, para comunicar-se com entidades espirituais ou para viajar. através do mundo destes para procurar ajuda. Esse uso do mito torna o xamã uma figura indispensável, uma vez que em seu ambiente se estabelecem diferentes relações sociais e culturais que, no caso das sociedades indígenas, o tornam indispensável para a continuidade cultural do grupo. Os mitos e práticas rituais de cura não são nada estáticos, pois são orientados para incluir elementos da religião cristã, de forma a alcançar um todo sincrético, incorporando soluções do mito tradicional a vários aspectos do cristianismo.

Centrando-nos no pensamento religioso nativo do norte dos Andes, pudemos verificar um conceito que permaneceu inalterado, praticamente durante milênios de história. Esta noção considera que toda coisa ou ser é dotado de um duplo espiritual. Em runasimi, kamaq é definido como o espírito que concebe que todo ser existe e tem vida. Muitas coisas estão dotadas desta energia anímica. Na antiguidade esta definição se aplicava a xamãs ou sacerdotes, assim como a todo lugar sagrado (huaca), além disso, o poder de uma planta psicotrópica ou medicinal torna-se para a cultura andina uma manifestação de um espírito que habita a planta ou o território.

Da mesma forma, esta entidade mítica é responsável pelo poder de lagoas, morros, cavernas ou objetos antigos de sítios arqueológicos, podendo ser benigno ou maligno, dependendo se o poder que anima o objeto, lugar ou ser seja positivo ou negativo. No início de cada cerimônia, seja terapêutico ou divinatório, invocam-se espíritos ou seres míticos, com cantos ou orações, e listam-se os vários lugares sagrados do universo andino. Alguns deles podem ser zonas com que o xamã ou maestro tenha feito um pacto (com seus aliados), ou lugares venerados como verdadeiras fontes de poder, como ocorre no caso das lagoas Huaringas de Huacabamba. Os espíritos dos antepassados pré-hispânicos também são invocados durante os rituais xamânicos junto aos entes tutelares das montanhas sagradas de cada região.

Determinadas montanhas e morros são habitados por seres espirituais, conhecidos pelo nome de Apus, deidades protetoras que operam o espaço-tempo usual tanto do indivíduo como do grupo.

O xamã atinge uma forma de consciência independente dos sentidos físicos, que move intencionalmente para fora do corpo para fazer a viagem a universos paralelos, a fim de colocar em prática seus métodos de adivinhação e cura de doenças. Entender este conceito nos permite perceber um dos parâmetros fundamentais da medicina tradicional andina, assim como a relação profunda que existe entre o mundo visível, invisível e o universo mítico ancestral.

Tudo isto confirma que o xamanismo constitui, tanto histórica como culturalmente, um sistema de conhecimento sobre religião e magia profundamente enraizado na essência ideológica indígena e mestiça, e que demonstrou, e continua a demonstrar hoje, uma considerável capacidade de adaptação. O simples fato de ainda estar vivo, depois de mais de quinhentos anos de intensa pressão de todos os tipos, exercida pela cultura ocidental, confirma esta afirmação.

Como já vimos, o curandeirismo representa um verdadeiro sincretismo, uma síntese de fórmulas religiosas indígenas e cristãs, a fusão de modelos comuns; ideias, valores e crenças foram se readaptando durante muito tempo. A região norte do Peru não foi uma exceção: o curandeirismo evoluiu de igual forma que o restante da geografia peruana e foi adaptando aos diferentes períodos ocorridos na história. Como consequência disto, os xamãs são considerados os herdeiros dos médicos e sacerdotes mágico-religiosos pré-hispânicos, com amplos conhecimentos para a prática de cura, com remédios procedentes de uma grande variedade de plantas, a maioria das quais ainda não conhecemos seus princípios ativos e, portanto, nem os benefícios que poderiam proporcionar no alívio ou cura de doenças humanas. Algumas destas plantas contêm compostos capazes de incrementar as percepções auditivas e visuais, além de outros sentidos, como olfato e o paladar, ou inclusive curar enfermidades da psique; todo este conhecimento há sido, sem dúvida, utilizado pelo ser humano desde a suas experiências iniciais com a vegetação circundante. Os assombrosos efeitos destas plantas são enigmáticos e misteriosos.

O uso de fórmulas vegetais com propriedade alucinógenas que enaltece a consciência há formado parte inseparável do ser humano desde milênios. Porém, até recentemente, não lhe foi dada a real importância que teve na formação tanto dos povos indígenas como das culturas “mais evoluídas”. Portanto, é lógico que tenham assumido destaque em rituais religiosos de culturas antigas, e que ainda hoje sejam motivo de veneração e medo para certas sociedades indígenas que mantêm modos de vida e tradições ancestrais, uma vez que a melhor forma de contatar com o universo espiritual é através do uso de plantas cujos efeitos abrem um portal para o sobrenatural.

Como comentamos anteriormente, as plantas psicotrópicas são profundamente místicas e misteriosas. Entre estas, também os cogumelos assumiram um papel essencial na vida religiosa dos povos pré-hispânicos há séculos, já que desde a mais remota antiguidade estiveram presentes no culto aos ancestrais. Em locais onde os cogumelos ainda são ingeridos nas sessões xamânicas, eles são reverenciados como protetores do segredo primordial de seus arcanos sagrados. Durante mais de meio milênio, os povos originários guardaram os cogumelos sagrados como um segredo valioso, evitando sua profanação (como vemos acontecer hoje com a ayahuasca). Atualmente, especialistas talentosos continuam com o culto, e alguns até continuam celebrando a antiga liturgia, em lugares inacessíveis e remotos.

Na iconografia Mochica verificamos que efígies de cogumelos antropomórficos se repetem com muita frequência em exemplares de cerâmica, bem como personagens com tocados em forma de cogumelo. Uma das espécies representadas com mais frequência é a Amanita muscaria, usada por muitas culturas xamânicas do Velho e Novo Mundo desde tempos remotos. Temos prova disso nos Olmecas, Astecas, Maias-Quiches, que sabiam que este cogumelo estava diretamente relacionado com o sobrenatural. A sua ingestão realiza-se depois de torrado ou seco ao sol, e na quantidade necessária de acordo com o objetivo da consulta. Quando a intoxicação é forte, os sentidos da visão e da audição aumentam significativamente, assim como as alucinações seguidas de convulsões e movimentos involuntários. O transe que produz é de um significado profundamente religioso para os povos que continuam fazendo seus rituais com eles desde tempos imemoriáveis.

Embora tenhamos muitos dados sobre o uso pré-hispânico de cogumelos no Peru, um antigo relatório emitido neste país por um jesuíta nos diz que os indígenas da etnia Yurimaguas, aparentemente já extinta quando ele o escreveu, estavam intoxicados com um cogumelo que foi vagamente descrito como “árvore de cogumelo”. Richard Evans Schultes destaca que a espécie ingerida por estes indígenas era a Psylocibe yungensis. No entanto, não temos evidências dos registros arqueológicos do consumo de cogumelos nas culturas pré-colombianas que evoluíram no antigo Peru, com exceção das representações iconográficas descritas acima. Nem encontramos indicações durante os anos de pesquisa de seu uso atual por qualquer comunidade indígena.

Xamã mochica com um tocado de cogumelo na cabeça

Os alucinógenos inalados também desempenharam um papel muito importante, uma vez que muitas plantas psicoativas no Novo Mundo foram utilizadas desta forma, especialmente na América do Sul, onde foram encontrados numerosos vestígios da sua utilização. Ilex guayusa, arbusto que contém cafeína e que atualmente é utilizado como chá estimulante, era utilizado para inalá-la, segundo descoberta no Altiplano da Bolívia, e datado de 500 d.C. aproximadamente. A tumba continha folhas desta planta junto com todos os equipamentos para prepará-la e consumi-la como inalante. Até o momento, cerca de 50 espécies de Virola utilizadas como inalantes foram classificadas na América do Sul, especialmente na bacia amazônica. Seus principais princípios psicoativos são as triptaminas, presentes em grandes concentrações na secreção interna da casca desta planta. No rito da inalação há todo um imaginário de crenças que permanece vigente, uma vez que todas as comunidades nativas reconhecem o poder único de transformação do xamã, tanto em semideuses quanto em criaturas do mundo animal, como foi confirmado pelos registros tanto arqueológicos como etnográficos. Atualmente, muitas tribos indígenas da Amazônia peruana seguem empregando para entrar em transe as sementes da árvore yopo (Anadenanthera peregrina) como rapé para inalações nas sessões xamânicas. Os Waikas são um claro exemplo disso, enquanto os Boras e Huitotos continuam usando seu método preferido, pegando a mesma semente, mas na forma de bolas ou comprimidos revestidos com uma resina que eles próprios fabricam.

Os rituais com folhas de coca estão há muito ligados às sociedades indígenas dos Andes e da alta selva amazônica. Sua utilização se utiliza de muitas maneiras, segundo ao fim que se destina a sessão: tal como para fins adivinhatórios, comunicação com os espíritos ancestrais e para diagnósticos de enfermidades. Além disso, a mastigação das folhas de coca fornece aos indígenas nutrientes importantes e necessários à sua alimentação; verificou-se que os grupos que mais consomem são resistentes a adoecer e são fisicamente mais fortes.

No ritual que o curandeiro realiza é requerido em algumas ocasiões uma intensa mastigação de folhas de coca. É ingerido uma quantidade muito maior do que a habitual, para manter-se em estado de vigília permanente e conseguir assim a estimulação necessária para permanecer acordado durante toda a noite. Desta forma se chega ao Estado Alternativo de Consciência e chega-se à fase divinatória, geralmente conhecida como leitura dos sinais. A consequência desse excesso de superexcitação com a folha de coca produz no oficiante fortes contrações musculares fora de seu controle, que favorecem a comunicação com os espíritos dos ancestrais, as divindades e com espectros de curandeiros rivais transfigurados. Como resultado, em quase todos os mitos vernáculos sul-americanos, os xamãs podem tornar-se ou adquirir os atributos de jaguares ou pumas, reverenciados como os animais mais poderosos do continente e símbolos da divindade.

O uso e a importância da coca nas práticas mágicas e de adivinhação vêm desde tempos muito antigos. Temos provas disso através de achados em vários sítios arqueológicos, como a cerâmica de terracota de Huaca de la Luna ou Huaca Cao Viejo, com representações de curandeiros em transe, com o pote de cal numa das mãos e um utensílio cónico para ingerir o seu conteúdo na outra; em outros casos, aparecem bolsas com folhas de coca ou remédios medicinais pendurados no ombro ou na cintura.

Com base no trabalho realizado por Richard Evans Schultes e Robert F. Raffaut, a planta da coca na Amazônia ocidental deve ser muito antiga. Para tal afirmação se baseiam, em outros motivos, nos mitos de origem recolhidos de algumas comunidades nativas da Colômbia. Estes mitos narram e descrevem os primeiros habitantes, que chegaram em uma canoa arrastada por uma anaconda, em que viajavam um homem, uma mulher e três plantas, a yuca (mandioca), yagé (ayahuasca) e a coca. Este e outros indícios do uso da planta corroboram com a sua antiguidade.

A variedade da coca amazônica difere da andina por sua forma e composição química. Também é diferente no modo que se elabora para seu consumo, já que as folhas são colhidas diariamente, e depois, dentro da maloca, são torradas em um recipiente especial, até adquirirem a coloração marrom (igual ao café). Feito isso, as folhas são moídas no pilão até virar pó. Este é misturado com as cinzas alcalina que se produz ao queimar diversos tipos de árvores como a frutífera mapati (Pourouma cecropiaefolia) ou o guarumo (Crecopia peltata), como também a chacrona (Psychotria viridis). O resultado é finalmente passado por uma espécie de peneira, até adquirir a forma de um pó fino chamada mambe ou ypadu pelos indígenas. Durante todo este processo o xamã recita orações, cantos ou ícaros e narra relatos mitológicos. Finalmente ingere o produto em sessões ritualísticas.

Também nas montanhas andinas do norte peruano, os mitos são responsáveis por explicar a origem do Wachuma – o cacto sagrado – e seu uso por figuras míticas originais e heróis ancestrais. As comunidades nativas do norte do Peru conheciam os efeitos deste cacto milhares de anos antes de ser descoberto pela ciência moderna, e por isso o utilizavam em seus rituais para viajar a outros universos paralelos. Na verdade, e como Peter T. Furst destaca em sua obra “Hallucinogens and Culture”, ‘o primeiro cacto alucinógeno representado na arte americana antiga é um membro alto e colunar da família Cereus, Trichocereus pachanoi’.

Certamente este cacto está representado por numerosas culturas do antigo Peru, desde: Os Haldas (2.000 a.C.), Sechin (2.000 a.C.), Garagay (1.650 a.C.), Paracas (1.000 a.C.), Chavín de Huantar (800 a.C.), até Moche e Nazca, no século I. Também está representado em outros objetos fabricados em lítico, cerâmico, tecido ou metal.

Como vimos acima, dentro do processo que os xamãs têm para atingir o mais alto grau, está o uso de substâncias psicodélicas e psicotrópicas, que estão contidas nas plantas “vivas”. Aquelas que, depois de consumi-los, permitem-lhes viajar em “voos mágicos” durante as noites de mesada (cerimônia de cura). A planta que se utiliza nesta zona do país para atingir este objetivo chama-se Sanpedro ou Wachuma, um poderoso cacto visionário que fala com eles, os guiam e se transforma na sombra de uma silhueta humana.

Imagem de um xamã em Chavín de Huantar, carregando um Wachuma

A viagem para fora do corpo é realizada pelo espírito do xamã, de onde se acredita que ele emerge ou é projetado para longe em sua forma humana ou assumindo a aparência de um animal. Aqueles que conseguem vê-los afirmam que tais indivíduos únicos chegaram até eles em carne e osso, mas na realidade é apenas a sua projeção, uma espécie de alter ego de si mesmos, a sua sombra. Aí a psique humana desempenha um papel importante porque o espírito não se liberta, é a força da mente que o liberta, que o move à vontade do Wachuma, ou seja, das plantas sagradas que o auxiliam. Essas habilidades mediúnicas só podem ser alcançadas por “maestros” ou chunganeros (curandeiros).

O cosmos original e o presente são análogos em seus sistemas simbólicos, pois grande parte deles ainda está em uso e pode ser identificado em cerimônias litúrgicas de culturas passadas como a dos Moche ou Mochicas, entre outras, nas quais podemos observar vários conceitos pelos quais foram regidos em determinados momentos de suas vidas e que são fundamentais para o atual xamanismo praticado em todo o norte do Peru. Como comentamos acima, o eixo primordial de todo este sistema xamanístico é o cacto Wachuma que domina o centro de toda a atividade mística na costa e serra peruana no norte.

Nos últimos anos, graças aos projetos de escavações sistemáticas realizadas nos diferentes sítios arqueológicos de todo norte do Peru, há saindo a luz uma série de peças com representações de xamãs e curandeiros (de ambos os sexos) em diferentes momentos de uma sessão de cura – imposição de mãos, transe, sacudindo o maracá em êxtase, tomando um bolo de coca com o calero na mão, ou transmutados em diversos animais –, que permitiram que essas peças fossem localizadas e documentadas no lugar e no espaço temporal.

Os motivos antropomórficos, zoomórficos e vegetalistas são comuns na cerâmica, tanto escultórica como desenhada, bem como em objetos de ouro e prata e em todos os tipos de esculturas pré-hispânicas. Como referimos anteriormente, entre estas representações encontramos também motivos não só relacionados com o xamanismo e os curandeiros, mas também com a mitologia e os rituais – entre estes, o cacto Wachuma –; além disso, felinos com pintas e volutas escalonadas são comuns nos diversos períodos cronológicos desde o Formativo das Américas. Os mitos de criação estão presentes no transe do xamã através da visão de todos os tipos de animais e plantas, como jaguares, veados, pássaros, sapos, serpentes e outros, e intimamente relacionados aos psicotrópicos sagrados, seja através da associação simbólica ou do imaginário do transe extático. Como confirmação deles temos a representação em terracota de certos curandeiros, com os olhos bem abertos ou fechados, indicando transe. É o caso específico de um exemplar coloquialmente conhecido como Tatuado, proveniente das escavações de Huaca de la Luna, com desenhos de motivos zoomórficos incisos em todo o rosto, mostrando a visão do xamã em êxtase. Além disso, vemos uma espécie de tinta branca nos cantos das pálpebras fechadas do personagem, o que talvez indique seu estado de cegueira permanente. O “vôo xamânico” também está presente nesta escultura da Huaca de la Luna, pois nos é dada uma narração do que acontece durante a “visão” e como o oficiante se move pelos diferentes universos, através da projeção meditada do seu espírito. Os xamãs também são observados em seus momentos de transe extático, e principalmente no tratamento de doenças por causas sobrenaturais, causadas por entidades do mundo mítico ancestral, que desejam receber seu alimento espiritual; O resultado disso é a metamorfose homem-animal, como início de todos os fenômenos: espíritos animais aliados, a senhora dos animais e das plantas e “maestros” sobrenaturais. Com este conceito de conversão tão proeminente nos sistemas tradicionais, é fácil compreender por que é que as plantas capazes de alterar a consciência conseguiram colocar-se no centro do cosmos.