Universo Xamânico

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Nem todo neoxamanismo, é xamanismo

Napaykuna!

Recentemente estive participando de um Encontro de Médicos Tradicionais Andinos; ou seja; de curandeiros e yachacs (xamãs). Durante este diálogo de saberes originários debatemos entre outras questões, que tem muita gente por aí definindo o Xamanismo e se apropriando dele sem ao menos conhecer o que realmente vem a ser. Isso é um erro primário que ocorre por esses neoxamãs que estão pipocando por aí e dando definições sobre o que é Xamanismo quando sabemos que por si só ele não se define, pois de uma certa forma é uma linguagem complexa que foi sendo desenvolvida (quiçá recebida) ao longo da história. Nos Andes aprendemos que o Xamanismo é uma ponte que nos liga e dá acesso a outras realidades, e as técnicas arcaicas do êxtase que foram adquiridas e desenvolvidas por nós, como também uma série de plantas e fungos têm um papel fundamental dentro deste complexo chamado Xamanismo.

Infelizmente hoje vemos pretenso neoxamãs colocando informações sobre esta antiga Arte, que não tem nada a ver com este Caminho Ancestral. Estas pessoas, descendentes dos invasores que roubaram as terras e quase dizimaram completamente os povos nativos, agora roubam seus conhecimentos, os reinterpreta dentro de uma miscelânia de tradições com pseudo-esoterismos e surge esse neoxamanismo insonso, barato, cheios de interpretações equivocadas em que as pessoas participam de uma vivência de final de semana e saem de lá acreditando serem os novos xamãs. Quanta irresponsabilidade destes indivíduos que se aproveitam do Xamanismo e dos incautos para ganharem cada vez mais dinheiro, transformando este Caminho em um artigo de boutique. Não é à toa que estas pessoas são conhecidas como xamãs de plástico.

O que acontece, na verdade, é que a maioria de nós está tão carente atualmente que aparece um bobo ou boba de poncho com uma bandana ou pena na cabeça que bebeu ayahuasca e fica batendo tambor chamando um animal de poder e provocando cartases, iguais ao que muitos pastores pentecostais fazem em suas igrejas com danças, e chamam isso de Xamanismo. Desculpem! Mas isso chega a ser ridículo. E um ridículo que custa bem caro pelo que temos visto, tal como ocorreu recentemente em Brasília com a morte de um jovem ator, onde ocorreu uma série de erros por parte do grupo espiritualista. Entretanto, cada um tem o seu momento, e caso se afine com algum desses tipos de trabalho, tudo bem.

Mas o que ocorre hoje em dia é um indivíduo que se diz xamã, e pouco sabe do mesmo. Vejo pessoas que viajam para a Bolívia, Equador e Peru, e voltam destes lugares fazendo despachos (oferendas) como se fossem um xamã nativos. Mal sabem eles, o porquê e as funções de todos os elementos empregados na cerimônia, a que Montanhas Sagradas saudar (e olhe que são dezenas delas), além do que fazer após encerrar o trabalho. Mas o que acontece, é que eles apenas repetem fórmulas sem operar com a verdadeira essência do que é acessível.

Vejam o exemplo na área da informática, dado por um amigo (Júlio César Guerrero) numa antiga lista de discussão da qual fazíamos parte:

“Alguns têm conhecimentos profundos, logo essas pessoas podem ser chamadas de especialistas em informática. Já outros apenas sabem usar o computador, ativar o Windows, entrar na internet e navegar. Agora digamos que essa pessoa vá para um país onde todos tenham computadores, mas não saibam usar. Com seu quase nenhum conhecimento o que ali chega vai parecer guru. Mas o risco é que ele não entende profundamente a essência do que está trabalhando, sabe usar um software, mas não está apto a resolver problemas do hardware. Todo consultor em informática já se deparou com os problemas que cria quem não sabe esta área e se mete a expert”.

O mesmo está ocorrendo no Xamanismo já a algumas décadas. Pessoas que apenas viam os xamãs agirem, copiaram a forma, mas nada da essência entendiam e vieram para esta “civilização” e se fizeram “xamãs” e aí estão. Enquanto o software não der problema fazem sucesso. Mas a questão é que o verdadeiro Xamanismo exige um upgrade, um ampliar da potência do hardware e isto estes pretensos xamãs nãos sabem fazer. Assim vão ficar sempre nestas brincadeiras insosas, causando catarses e arrepios, mas nada realizando.

Outra moda agora são as cabanas de suor (saunas sagradas). E lá vai o povo na onda dos temascais. Já vi montarem saunas sagradas em lugares nada a ver, mal sabe eles que a base de um trabalho assim começa pela escolha do lugar. Um xamã sente os campos de energia da Terra e sabe onde estão os “pontos de poder”. A fogueira tem que ser orientada via linhas de energia, tem que haver uma árvore forquilhada a leste da cabana, enfim são tantos detalhes para o poder dela ser sagrado mesmo, senão é melhor ir num clube tomar uma sauna que com as duchas quentes porque faz muito bem para a saúde.

Nestes mais de trinta anos neste Caminho, cheguei à conclusão de que qualquer trabalho sério no Xamanismo, devemos nos resolver internamente, para que nossas irresoluções e crises, carências e medos, não sejam projetadas nos mundos exteriores a este e atraiam seres que vão se aproveitar destas fraquezas para seus próprios fins. E existem muitos seres assim, que já foram contatados em outras épocas por antigos magistas de vários povos que continuam por aí, prontos a enredar incautos em suas redes e dar migalhas de um todo que nos pertence, em troca de nossas vidas, energia e consciência. É por isto que insistimos que o Xamanismo deve ser trilhado com muito cuidado e foco e não como uma forma de compensação por qualquer irrealização neste mundo.

Uma coisa que impressiona é o preço das vivências xamânicas que vemos por aí. Nada contra cobrar, sempre foi assim entre os antigos, ninguém vai a um xamã sem levar presentes em qualquer cultura, mas fazer disso uma exploração financeira é uma abordagem muito diferente. Por essa razão, alertamos sobre este neoxamanismo que está pipocando por aí.

O Xamanismo é um caminho de equilíbrio, cura e harmonia, mas quem o ensina precisa ter um mínimo disso realizado. Xamãs que vivem resfriados, irritados, sem senso de humor, preocupados com a vida, que vivem caindo em briguinhas de ego, atacando outros para se promoverem, que vivem preocupados com o que “o meio” pensa deles, que tentam limitar a infinitude do Caminho Xamânico, em conceitos concretos só para serem aceitos, que se dizem únicos e infalíveis, no mínimo são “questionáveis”. Estar perto de um xamã é sentir uma onda de energia indescritível, e entrar em comunhão com a Magia plena, pois, por definição, um xamã é a ponte entre dois mundos, este mundo e os mundos mágicos dos quais fomos apartados pelo condicionamento chamado educação na Sociedade Patriarcal que vivemos.

O Xamanismo é um sistema que nasce no Paleolítico com os Homo Sapiens, e esta herança ancestral foi passada de geração em geração até chegar aos povos indígenas que mantiveram suas estruturas originais, incorporaram outras e as adaptaram para atender a demanda da sua cultura. Povos invasores tentaram desestruturar e eliminar de vez o Xamanismo, numa campanha sistêmica de extermínio dos povos nativos, não só fisicamente, como também os apagando da história com avaliações superficiais e patéticas de suas tradições. De uma certa forma, ainda vimos isso atualmente, e inclusive alguns foram eliminados recentemente.

Para que isso não ocorra, acredito que devemos fortalecer o Xamanismo nas suas estruturas verdadeiras e primevas, estudando cada vez mais profundamente as tradições xamânicas originárias.

Podemos, inclusive, adequá-las para o meio urbano… porém é necessário termos imenso cuidado ao fazê-lo.

Atualmente com o advento das medicinas das florestas, houve mais uma banalização do Xamanismo no movimento que algumas pessoas estão chamando de tchaixamanismo… que chega a ser hilário, onde qualquer um com a maraca na mão, uma pulseira no pulso e um cocar na cabeça passam a se intitular “xamãs” pois fez um retiro na floresta amazônica e utiliza das medicinas das florestas para se autopromoverem. Chega a ser um escândalo um negócio desse.

E muitos usam a ayahuasca como a ferramenta para atrair pessoas para suas instituições com nomes pomposos como se estivessem homenageando a Lua, Pachamama, Shiva ou outro tipo de Deus ou Deusa. Muitas destas casas, tal como aconteceu com a morte recente do jovem ator em Brasília, não tem nem um protocolo para recepcionar os indivíduos que irão frequentar seu espaço, mal tem questionário de anamnese, entre tantas outras coisas como: ter uma pessoa preparada para lidar com um surto no seu ambiente, a instituição estar ligada a alguma tradição espiritual e se este grupo está devidamente registrado como uma instituição religiosa. Sinceramente, acho que deveria haver um rigor maior por parte das autoridades para que tal espaço realmente tenha cumprido todas as exigências da CONAD (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas), e senão que suas portas sejam fechadas. Mas infelizmente não é isso que acontece, o que termina prejudicando o trabalho de uma série de instituições sérias que realizam um excelente trabalho e por causa de poucos passam a serem marginalizados pela opinião pública.

E uma coisa importante que devemos ter muito cuidado é de não julgar e culpar as medicinas sagradas, mas discutir o cuidado na aplicação da medicina. É como falou um irmão de caminho recentemente para mim: “Culpar as medicinas é algo como culpar o automóvel pelos acidentes”. A regulamentação do uso da ayahuasca existe, mas nada adianta se o dirigente de uma instituição age de maneira arbitrária, e a este a lei deve ser aplicada. E lembramos mais uma vez, que devido a negligência de uma instituição que se diz neoxamânica, a vida de um jovem foi ceifada. Deixo a nossa solidariedade a família e amigos deste rapaz.

E mais uma vez deixamos o alerta e o pedido para não banalizarem as medicinas sagradas.

Munay,

Wagner