Universo Xamânico

Início » Mitos sobre a prática espiritual dos Q’ero

Mitos sobre a prática espiritual dos Q’ero

Napaykuna!

Até poucos anos atrás, a espiritualidade oriental parecia ter resolvido todas as questões e deficiências espirituais do mundo ocidental moderno, porém hoje, os povos originários das Américas começam a ser ouvidos com mais força por meio de seus conhecimentos, cultura, tradição, medicina e espiritualidade. Desta forma, o caminho vermelho passou a ser a força espiritual que impulsiona a integração dos povos indígenas e cuja filosofia de gênese se concentra na aliança permanente da humanidade com a essência da Mãe Terra.

A tradição espiritual andina é um dos eixos centrais do caminho vermelho e atualmente é vista como uma rica fonte de sabedoria e práticas ancestrais vigentes até hoje. Por exemplo, por um lado os mestres da nação Q’ero, guardiães deste conhecimento, têm difundido estas tradições por todo o mundo e por outro lado milhares de pessoas viajam ano após ano para o território andino para sintonizar com a essência espiritual de Pachamama, a Mãe Terra andina.

A abertura das comunidades Q’ero ao mundo globalizado nos permitiu descobrir a essência da idiossincrasia e paradigma andino, mas essa abertura provocou – como esperado – exageros e mitos modernos sobre a vida desses pacíficos habitantes andinos. A exposição dos mitos atuais tem o propósito de contribuir para que a cultura Q’ero conserve sua essência etnohistórica, como patrimônio da cultura peruana, e porque não da humanidade.

Inúmeras vezes ouvimos falar em círculos místicos que os Q’ero vivem acima das nuvens mais de 5000 metros de altitude, porém isso não é de todo verdadeiro, já que eles se locomovem por três pisos ecológicos que que variam de 1500 metros acima do nível do mar, com acesso à alta selva ou montanha, até as punas de 4500 metros de altitude, ambiente ideal para lhamas e alpacas pastarem. Mas esta etnia, vive a uma altitude média de 3.700 metros acima do nível do mar, onde a neblina constante é resultado do calor que vem do alto Amazonas peruano e os ventos frios dos Andes.

Outra falácia que é muito falada no meio esotérico, é de que eles viveram escondidos e encerrados nas alturas durante 500 anos e que foram descobertos por uma expedição realizada pelo antropólogo peruano Oscar Nuñez Del Prado junto com outros acadêmicos em meados da década de 1950, na qual se afirma que as comunidades Q’ero foram descobertas pela primeira vez, algo como a descoberta de uma civilização perdida ou presa no tempo entre as imponentes montanhas andinas. Apesar da expedição ter realmente existido, e de ter sido a primeira expedição científica as comunidades desta etnia, não foi uma descoberta. O fato é que quando o Tawantinsuyo (Império incaico) foi subdividido e distribuído durante o período colonial para sua administração, é provável que os Q’ero, como qualquer comunidade, tenham participado das mitas ou minkas coloniais e com obrigações fiscais a que todos os ayllu incaicos estavam sujeitos. E também é sabido que eles não ficaram 500 anos enclausurados no alto das montanhas, pois documentos colônias provam que os Q’ero estiveram sujeitos ao poder da burguesia de Cusco onde ricos latifundiários eram titulares de títulos de propriedade nas terras dos Q’ero. Devido a estes fazendeiros, os Q’ero tiveram que trabalhar como escravos para os exploradores das suas próprias terras. Sendo libertados e reconquistados suas propriedades após uma reforma agrária que ocorreu 1968. Finalizando essa questão, ainda existe uma foto da década de 1920 do fotógrafo cusquenho Martin Chambi que mostra membros da etnia Q’ero em Paucartambo.

Outro mito muito comentado é de que os Q’ero conservam a pureza do sangue incaico e por essa razão são os últimos Inkas. Até provável que eles possam ser considerados como os herdeiros Inkas, porém devemos considerar que a cultura incaica está impregnada no sangue de cada povo andino, em todo vasto território peruano com perfis etnográficos semelhantes aos dos Q’ero e que preservam, da mesma forma, costumes e tradições ancestrais que remontam aos tempos pré-colombianos. É possível que esta etnia preserve boa parte do DNA incaico de forma imóvel, mas devemos considerar que após a ocupação hispânica o território peruano foi submetido por 5 séculos a um constante processo de mestiçagem etnocultural, o que torna difícil distinguir alguém que possui uma linhagem sanguínea intacta. Inclusive, os Q’ero, como todas as comunidades indígenas, possuem inúmeros nomes e sobrenomes de origem ocidental, fruto justamente do processo sincretismo cultural.

Antes de continuarmos a falar sobre alguns mitos em relação a esta etnia, é importante salientar que os Q’ero são uma cultura original importante não só para o Peru, mas para toda a humanidade. Eles merecem ser ouvidos e compreendidos em sua essência e verdadeira dimensão, considerando para isso que espiritualidade e cotidiano são eixos que vão na mesma direção, para o qual é inconveniente falar de espiritualidade Q’ero sem considerar sua cultura, música, folclore, pensamento, produção econômica ou tradições orais, o mundo andino é um universo holístico onde tudo caminha junto e, portanto, todos os aspectos da realidade merecem ser considerados com igualdade de oportunidades.

Infelizmente hoje, eles vivem alertas pela ameaça da exploração mineira de seus solos e do cultivo ilegal de folhas de coca por traficantes de drogas da região amazônica. E por incrível que pareça, inúmeras seitas religiosas ligadas ao protestantismo encontram a cada dia maiores adesões entre as populações das comunidades campesinas. O cenário atual, no entanto, parece ter se movido com muito mais força em termos da indústria do turismo místico-esotérico e hoje, por exemplo, são numerosos os paqos (sacerdotes xamãs) Q’ero que aparentemente migraram para as grandes cidades para atender precisamente o turista ansioso por uma experiência mágico-religiosa.

Essa nova indústria do turismo místico vem causando polêmica e desinformação em alguns casos. Gera grande confusão no sentido de que a história e as tradições ancestrais autênticas começam a ser distorcidas, que acabam se transformando em propostas engenhosas ou modelos de moda da nova era espiritual. Observa-se com a chegada desse fenômeno, por exemplo, que a língua runasimi original foi alterada e mal pronunciada. Todos conhecemos as graves consequências de mudar uma única letra ou palavra para a pronúncia do significado espiritual e intelectual de uma língua sagrada como a runasimi.

Neste aparente plano de cumplicidade ou silêncio por parte do mundo académico e de grandes personalidades da esfera mística, não julgo pertinente continuar a ser uma testemunha silenciosa do que acontece e à custa do que poderia acontecer, considero prudente levar à opinião pública algumas ideias que foram coletadas da experiência direta e da convivência com as comunidades andinas da Nação Q’ero.

Outro mito que é fruto do turismo místico-esotérico é de que esta etnia se dedica exclusivamente a práticas espirituais, que convencionou-se chamar de xamanismo. Na verdade, esta nação vai além desses preceitos, pois tem uma riqueza folclórica impressionante, matizada por suas roupas, costumes, músicas e danças. Para os Q’ero, a espiritualidade está necessariamente ligada ao estilo de vida da população andina, de modo que outros aspectos importantes como a vida produtiva, a organização social ou as festividades locais não devem ser negligenciados. É lógico que o conhecimento ancestral foi consideravelmente enriquecido, isso não pode ser negado e devemos agradecer aos os Q’ero por sua contribuição à espiritualidade. Mas é errôneo pensar que os Q’ero são um grupo de mestres xamãs que se dedicam exclusivamente a ler a folha de coca e fazer oferendas para Pachamama.

Nesta onda de exploração da espiritualidade dos Q’eros, por grupos esotéricos, surgiram alguns mitos de eles são descendentes de sábios da proto-história chamados Laykas, que viajaram da Ásia para chegar ao continente americano e que provavelmente viveram escondidos entre as populações Q’ero sob o nome de “guardiões da terra”. Isso se deve ao fato de Dr. Villoldo, um médico antropólogo cubano, afirmou (sem referências acadêmicas) que os Q’ero desceram do seu território nas altas montanhas e revelaram seus segredos espirituais. Infelizmente inúmeras grupos esotéricos e místicos ocidentais, com falta de bom senso, reconhecem esta versão épica. Por ser essa afirmação recente, até o momento não foi revelado quem ou quais foram os mestres secretos de origem Q’ero que transmitiram seus conhecimentos ao Dr. Villoldo, que ele agora compartilha abertamente com toda a humanidade com o nome de Munay-ki. Segundo ele, os herdeiros dos Laykas transmitiram nove ritos ou códigos compactos, que seriam a síntese de todo o conhecimento e iniciações secretas dos xamãs andinos.

Porém a realidade é diferente, ao visitarmos as comunidades Q’ero e fazermos contato com seus paqos, nenhum deles se referem a nove ritos agrupados de forma metodológica para se iniciar no xamanismo andino. Fato que sugere que o autor intelectual dessa “corrente” andina é o próprio Dr. Villoldo. Entretanto, o estrago está feito e com método holístico proposto por um cientista ocidental terminou tendo repercussão mundial. No entanto, muitos peregrinos ocidentais em sua ânsia de descobrir in loco os ritos ou códigos do Munay-Ki nas montanhas andinas, são confrontados com a realidade manifesta deste capítulo do cenário místico andino.

Outra apropriação cultural dos Q’eros que atualmente está em moda, é o fenômeno dos supostos Códigos Andinos que teve um efeito imediato de “choque” em muitas pessoas ávidas por continuar sintetizando “novos” saberes ancestrais que estão surgindo, como neste caso. da tradição espiritual andina. Infelizmente, desta vez essa proposta surgiu no início da segunda década deste século pelas mãos de um jovem paqo Q’ero, Don Pauccar. O estranho é que esses supostos códigos se assemelham muito com os propostos de figuras em evidência no mundo místico atual, de origem argentina e espanhola que nem vale a pena citar os nomes. O que realmente vale a pena informar, é que a palavra código não existe na língua runasimi e os autênticos paqos Q’ero desconhecem tal “corpo de códigos” listado em sete. Acredito que os arquitetos desta metodologia da nova era, viesse a público esclarecer a sua autoria e estabelecer a verdade sobre mais uma interferência no mundo andino.

Como falamos anteriormente, a nação Q’ero no final o século 20 passou a ser alvo de turismo espiritual, primeiro por iniciativa de grupos místicos ocidentais que terminou atraindo recursos e econômicos de turistas do exterior que beneficiam as famílias Q’ero, fator controverso no abuso que esse tipo específico de atividade pode causar pelo capitalista estrangeiro e que há algum tempo distorcem as práticas ancestrais originais, perdendo sua essência com o sagrado. Obviamente essa demanda dá como resposta que os próprios paqos (xamãs) saem em busca de novos recursos econômicos. Na minha opinião ainda são poucos, mas há aqueles pampamisayuq que permanecem em suas comunidades e, portanto, tornam-se os “mais puros” e menos contaminados pela civilização ocidental. Devido a entrada de capital de turistas estrangeiros, alguns Q’ero passaram a também se beneficiar deste filão, organizando grupos de turistas pela internet para participarem de um turismo vivencial e espiritual nas terras da sua etnia. Temos observado constantemente, em nossas viagens de estudo, que existe alguns nativos que visam o bem da sua comunidade com essa iniciativa, porém outros não. Felizmente agora, para entrar em qualquer comunidade da nação Q’ero, será necessário ter autorização de um conselho tribal como era feito antigamente, mas desde a chegada dos ocidentais com dinheiro era feita vista grossa.

Existe uma série de outros mitos em relação a espiritualidade andina em torno dos Q’ero, porém a nossa intenção ao divulgar esses pontos de vista não é diminuir a importância e a validade dos sentimentos dessas comunidades, muito pelo contrário. De resto, trata-se de uma iniciativa que tenta recolher a essência deste povo pacífico que possui uma inestimável riqueza etnocultural, mas que se reduziu ao canal do mágico-religioso e do esoterismo. A nação Q’ero, deve ser respeitada e considerada dentro do campo cultural e mostrar um botão: porque é urgente reavaliar suas canções, músicas, expressões populares, indumentárias, folclore, espiritualidade indígena e tradições ativas que caracterizam a verdadeira essência da Nação Q’ero.