“Aqui sentimos por que, durante séculos, homens obstinados colocaram as montanhas ou a montanha acima de tudo, inclusive de si próprios, pois morrer aqui não é morrer, é eternizar-se, e todas as razões do mundo nos leva a ficar aqui. Nada é tão radiante, tão fulgurante, tão vivo como as altas montanhas; aqui atingimos o ponto mais alto da vida, junto das portas da eternidade. Só esses homens conheceram a verdade mais extremada e os significados mais reais desse complexo que encerra a teia da vida e da morte”. ASSIS AYMONE
Fazem dez dias que me encontro no Vala Sagrado dos Inkas. Passei a primeira semana conduzindo uma aluna da Patagônia Argentina por algumas huacas, visando despertar a semente andina que se encontra dentro do seu Ser. Esta foi uma das últimas orientações de Tayta Matzú deixou para mim antes de deixar a Terceira Dimensão. Sua partida também é um dos motivos de eu estar aqui neste mês de maio em terras andinas. Ele faleceu três meses atrás, e foi embalsamado em seguida, porém só na próxima semana ele será enterrado dentro de uma caverna na província de Espinar ao sul de Cusco… e estarei lá para participar dos Ritos Finais, porém antes irei fazer uma jornada até o Apu Pitusiray.
Já tem uns três anos que chegou as minhas mãos um livro de uma palestino-peruano, Walid Bahar Ode, no qual ele narra sua descoberta de que no topo desta montanha no dia 1 de outubro, é projetada uma sombra gigante na forma de um Felino e um Inka, que minutos depois transforma-se numa princesa. Em seus estudos ele descobriu que o cronista Guaman Poma de Ayala tinha conhecimento destas sombras e codificou essa informação e outras em sua crônica. No final do ano passado, um irmão de caminho contou-me que estava subindo o Apu Pitusiray para se conectar com este Apu e estreitar seus laços com esta huaca. KA me contou que a poucos meses Walid lançou um livro, “Tambotoco”, onde revelou outra incrível e polêmica descoberta. Nele, narra que os Inkas esconderam a localização de uma das suas huacas mais importantes, sua Pacarina (local de origem), a lendária Montanha Huanakauri… que muitos acreditam estar ao sul de Cusco, porém segundo Walid fica ao norte no Apu Pitusiray.
Foi para conhecer esta huaca que resolvi vir até Calca, no Vale Sagrado dos Inkas, e fazer uma jornada até este Apu.
Calca, 25 de maio de 2017.
Finalmente chegou o dia de subir ao Pitusiray. Era para ter sido ontem, mas devido as chuvas, combinei com o meu guia de iniciarmos nossa jornada hoje. Amanheceu nublado, mas não existe sinal de que vá chover… assim espero. Estou em Calca a dois dias, e neste tempo aqui tive o prazer de encontrar Walid caminhando na Plaza de Armas e trocarmos alguma ideia sobre suas descobertas e a minha jornada ao Apu. Informei que iria subir com o Yojan, ao qual ele disse que ele era um bom guia e eu estava em boas mãos. Tinha sido ele que havia guiado KA no ano passado até o segundo nível da montanha, a mesma meta que havíamos nos comprometido, porém faremos em dois dias. Iremos no dia de hoje até a Lagoa Qan Qan, onde montaremos nosso acampamento, e a amanhã iremos até o segundo nível. Por ser uma jornada de dois dias, levaremos conosco um cozinheiro. Decidimos não arriscar a subida até o terceiro nível, pois este mês de maio atípico fez com que as condições climáticas não sejam favoráveis.
As sete horas da manhã Yojan chegou a Plaza de Armas de Calca com um táxi e Arturo, nosso cozinheiro. O motorista nos levou até um ponto abaixo das antenas de celular no flanco do Pitusiray virado para a cidade. A partir deste ponto começamos a nossa subida até a lagoa Qan Qan, a 4.200 metros de altitude. No percurso até a antena, sinto meu coração pulsando na garganta e peço a Yojan para descansarmos umas quatro vezes. Após recuperar o ritmo respiratório normal seguimos nosso caminho. Passando a antena, o caminho que era pura subida, transforma-se numa pequena planície levemente inclinada por uns três quilômetros beirando um abismo que nos conduz até próximo a lagoa. Depois de quatro horas de caminhada, somos recepcionados por um casal de patos selvagens que voam em direção a água.
Escolhemos um local cercado de pedras junto a uma encosta, evitando o vento oeste e o frio que ele possa trazer, para montarmos o nosso acampamento. Depois de montarmos a barraca e colocarmos couro de carneiro dentro para protegermos do frio da terra, Yojan e Arturo saem a procura de lenha para fazermos uma fogueira, enquanto fico na barraca descansando da árdua trilha. Passado duas horas, eles retornam com alguns galhos úmidos devido a chuva do dia anterior. Após uma hora de tentativa de acender o fogo, Arturo resolve ir até a cabana de uns camponeses que vimos no caminho para conseguir lenha seca. Nesse interim Yojan continua tentando, mas sem êxito. O frio de quase zero graus nos envolve com a chegada da noite, por sorte Arturo consegue galhos secos e começa a preparar uma sopa de batatas para nos alimentar e aquecer.
Após o jantar, resolvi me recolher a barraca e descansar para o dia seguinte.
Acordei algumas vezes durante a noite, sem frio, apesar de o termômetro marcar -22 graus Celsius. Ao sair da barraca encontro meus novos amigos tomando um mate de coca. Recebo uma caneca de Arturo e após beber seu conteúdo resolvo ir até a margem da lagoa. Ao acordar pela manhã, sempre tomo banho, mas não tenho coragem de encarar a água gelada da laguna Qan Qan, porém resolvo molhar a cabeça… brrr!!! O frio intenso parece duas mãos apertando o meu cérebro como se quisesse esmaga-lo. Procuro respirar suavemente, tentando harmonizar o meu Ser e resolvo caminhar até uma caverna que vi assim que chegamos na tarde de ontem. Entro na cueva e direciono o meu olhar para as sombras que são projetadas no Apu Pitusiray. Devido a posição do nascimento do sol no mês de maio, não consigo visualizar a imagem do Inka, mas a figura do felino se apresenta de forma alongada… apesar de não dar para ver toda a totalidade de sua cabeça. Olho a sombra intensamente e por um momento, sinto a sensação de ver o Jaguar virando sua face para mim e olhando de volta. Estremeço. Uma rajada de vento e o bater das asas dos patos selvagens me ancoram no momento presente e resolvo caminhar de volta até nosso acampamento.
Yojan está pronto para nossa subida. Antes porém, vou até a barraca e apanho uma garrafa com Wachuma que havia preparado dias antes para este momento. Divido a bebida sagrada em três canecas e bebemos após eu baforar a fumaça do mapacho dentro delas. Mansamente, Yojan e eu começamos nossa caminhada até o segundo nível do Pitusiray, enquanto Arturo cuidaria de desarmar nosso acampamento e preparar nosso almoço. Durante o percurso, penso que todos os sentimentos de medo, cansaço, fome e sede, são limites virtuais que impomos a nós mesmos… na verdade, são códigos que nos foram impostos e que aprendemos durante o processo de socialização, esses sentimentos atuam em nós como anteolhos que só nos permitem ver unicamente o caminho de volta, e não a vasta imensidão a nossa frente.
Na altitude das montanhas, esses códigos pesam mais do que de costume. Chegamos a um nível de desgaste que só passamos a ter olhos para ver o caminho de retorno… é o ego agindo. De como contaremos aos nossos amigos, as agruras pelas quais passamos para atingir nossa meta, dramatizando, exagerando e as vezes mentindo. Enquanto faço essas divagações, escuto a voz do Apu Pitusiray dizendo que: só aqueles que dão muita importância a esse tipo de explicação egóica, a usam como pretexto perfeito para manter em equilíbrio sua arrogância. No mesmo instante, que essas palavras chegam a meu coração, sinto a consciência de que devemos perder a auto-importância, pois só assim não surgirá o tipo de sentimento que impeça de atingir nossos objetivos.
Mas uma vez, lá estava eu imerso numa realidade extrema, procurando inconscientemente ou conscientemente, alimentar a minha alma com a imensa energia que emana daquele Apu, buscando o equilíbrio entre os mundos em que vivo… tendo um pé na realidade ordinária e outra na não-ordinária. A mudança inesperada do clima durante a caminhada até o segundo nível, fazia com que eu me lembre disso a cada momento. Depois de passar por uma planície, chegamos a um ponto que a subida seria bem íngreme e com o mato alto, devido as chuvas que foram constantes no mês de maio. Peço que Yojan pare por uns cinco minutos, antes de começarmos nosso ataque final a nossa meta. Depois do descanso, começo a caminhar respirando de forma curta para o vento frio não atingir os meus pulmões e com ajuda de bastões, evitamos escorregar no mato molhado e pedras lisas.
Após meia hora chegamos ao monólito “Huanakauri”, a 4.600 metros de altitude, que se encontra envolvido por forte nevoeiro. Como mágica, no momento que pisamos o segundo nível, a névoa se dissipou e pudemos ver a “pareja mítica” (Sawasiray-Pitusiray) narrada nas lendas incaicas. Depois de filmar e tirar algumas fotos, procuro um local para me sentar e conectar com o Apu. Sou absorvido inexoravelmente por aquela imensidão e a totalidade do Cosmo. Não sinto mais o ar rarefeito, as dores e contrações musculares do esforço empreendido durante a subida. Meu corpo está leve como uma pena… estou consciente que estou fora dele em pleno voo extático. A minha frente vejo surgir a figura de Tayta Matzú, meu querido mentor andino, que faz sinal para segui-lo em direção a bruma a nossa frente.
Estamos no Taripay Pacha, mundo além do tempo e espaço, a dimensão do Grande Mistério, o útero do Cosmos que abarca todo o “Universo”. Somos viajantes cósmicos. Vejo os Andes envolvido por uma grande inundação, o Unu Pachakuti, que devastou os povos que aqui viviam anteriormente. Presencio a criação dos primeiros Inkas das espumas das águas do Lago Titikaka pelo Deus Wiracocha que os acompanharam até Tambotoco, local de origem de outros três casais. Ao olhar para o paredão de pedra, visualizo três janelas das quais saíram um casal de cada uma delas. Eles, juntamente, com o primeiro casal são representantes dos povos das quatro direções que deram sustentação ao Império Incaico (Tawantinsuyu). O mais forte dos irmãos, Ayar Kachi, com sua funda cria o lago Qan Qan para depois se fundir a montanha de onde eles se originaram… a mítica Huanakauri. Os outros dois irmãos, Ayar Uchu e Ayar Auca, resolvem ficar próximo ao local como guardiões do Tambotoco e são transformados em dois picos (Sawasiray-Pitusiray) de pedras, enquanto suas esposas (Mama Huaco, Mama Ipacura e Mama Rahua) carregando suas sementes em seus ventres, seguem Manco Kapac e Mama Occlo até Cusco para fundar o Império Inka.
Volto ao presente emocionado, por ter presenciado um momento mítico da história dos Andes. Olhando aquele monólito imponente e mágico, vejo ele assumir diferentes formas e volto mais uma vez no tempo no momento em que centenas de guerreiros nativos jogam pedras do alto dele, fechando a passagem para as três janelas, impedindo que os espanhóis e huaqueiros viessem a descobrir e saquear o Tambotoco, a pacarina dos Inkas. Olhando mais uma vez para Huanakauri, vejo o imenso rosto de Ayar Kachi perfeito em todos os detalhes. A expressão da estrutura óssea moldava a textura da pele petrificada; a combinação exata das proporções, a harmonia dos componentes em seu conjunto, o sombreamento provocado pela exata inclinação e direção dos raios do sol. Era um rosto forte, com feições felinas, de queixo forte e nariz aquilino. Reconheço a divindade ali presente e no mesmo momento faço um Kintu com as folhas de Coca em sinal de respeito e gratidão por estar naquele local.
Yojan me chama dizendo que teríamos que começar a nossa descida, pois o tempo ameaçava a mudar. Deixo o Kintu debaixo de uma pedra e começo a caminhar até a trilha que viemos. Assim que começamos a descer, uma chuva de granizo nos atinge fazendo com que tenhamos mais cuidados com as pedras escorregadias. Por sorte, o sol volta a aparecer dispersando a chuva. Mais uma vez vem a minha mente a questão de como as montanhas atraem uma série de pessoas que as procuram para se isolar do mundo, procurando se encontrarem. Porém, nem todos conseguem estabelecer contato com seu Ser Interior ou atingir a consciência de nossa efêmera existência. Além de observar a imensidão visível e maravilhosa, podemos sentir o invisível que nos cerca em todo o seu esplendor e ser parte da imanência oriunda do Cosmo. Talvez seja por isso, que muito mitos, os heróis e heroínas ao atingirem a transcendência se fundem as montanhas. Já outros atingem o cume e morrem… ou se eternizam.
Meus pensamentos fazem com que a descida até a lagoa Qan Qan seja mais amena e rápida. Ao chegar ao nosso acampamento, Arturo está finalizando nosso almoço. Enquanto tomamos uma sopa de batata com macarrão e pedaços de toucinho, uma fina chuva cai sobre nos. Depois de levantarmos acampamento margeamos a lagoa até pegar trilha que nos levará até as antenas de telefonia de Calca. Um forte vento oeste é nosso companheiro constante nesta caminhada. Apesar de me sentir energizado com o contato com o Apu Pitusiray, meu corpo começa a dar sinais de cansaço e faz com que cada passo dado seja uma eternidade. Tomo a consciência que neste momento eu tenho que ser de pedra como Ayar Kachi Huanakauri, mas ao chegar ao meu destino em Calca, devo voltar a minha forma humanizada para continuar a minha jornada pela Vida.
Após três horas e meia de caminhada desde a lagoa Qan Qan, finalmente visualizamos o táxi que nos aguarda no mesmo ponto que iniciamos a nossa jornada na manhã do dia anterior. Neste momento sinto o sangue voltar a pulsar nas minhas veias, rompendo a camada petrificada que envolvia o meu ser. Abro os meus braços em direção ao Pitusiray e grito bem alto: Urpillay Sonqollay Ayar Kachi Huanakauri!
Calca, 27 de maio de 2017.
Estou de volta ao que chamamos de civilização. Ainda me encontro extasiado pela jornada até o Apu Pitusiray. Naquela huaca, me sentia no topo do mundo. Minha caminhada tinha sido árdua, durante todo o percurso eu não imaginava o esplendor da visão que teria quando lá chegasse. No Caminho Xamânico, poucos são os que não têm preguiça ou medo de seguir adiante, ou se entregam à dor e ao cansaço. Lá no alto, olhando a Pareja Mítica de um lado e do outro “Huanakauri”, pude ter a certeza de que seguir o caminho é estar disposto a subir montanhas, descer vales, caminhar em desertos, cair em abismos e sair de lá com a força do intento. Mas o meu maior presente ao vencer todas as intempéries é o êxtase ao perceber o pulsar da vida em toda a natureza que nos circunda.
Para mim, baseado no que li nas obras de Guaman Poma de Ayala, Cieza de Leon, Pachacuti Salcamaygua e Sarmiento de Gamboa, como também em minha visão lá em cima, faz sentido a tese de Walid de que huaca Huanakauri está localizada ao norte de Cusco no Apu Pitusiray. É completamente lógico os Inkas terem escondido essa informação dos espanhóis, afinal esta é considerada a huaca mais importante para eles… o Tambotoco, o seu lugar de origem.
Munay,
Wagner Frota
