O Xamanismo Amazônico se assemelha muito ao da Sibéria. As cosmologias são geralmente em níveis, como uma árvore ou pilar, e os xamãs voam para o mundo inferior ou superior. A iniciação xamânica envolve freqüentemente uma doença inicial, a experiência de ser desmembrado ou reduzido a um esqueleto, a utilização de numerosos espíritos auxiliares e o casamento com um espírito-esposa. As semelhanças com a Sibéria representa talvez a maior prova de durabilidade das tradições xamânicas.
No entanto, o xamanismo sul-americano reveste-se de alguns aspectos que o individualizam perfeitamente. O mais importante é o uso de plantas psicotrópicas, destinadas a induzir transes e visões. O Xamã da América do Sul distingue-se do indivíduo comum pelo domínio do transe e pelo vôo xamânico, costumam ser chamados pelo seu povo de Payé, que significa “imbuído de espírito xamânico”. Isto conduz a aquisição de espíritos auxiliares, canções e cânticos. Nestas regiões os cânticos são particularmente poderosos e exprimem o poder dos xamãs, parecendo que estes as vezes atingem estados alterados da consciência apenas com o auxílio das melodias. Um xamã perde seu poder se ficar contaminado, se violar um tabu ou se for atacado por um xamã mais poderoso. O poder do xamã tem que ser constantemente cultivado e a sua perda pode conduzir à doença e até a morte.
Entre o Desanas, o xamã que tomar Plantas Mestras transforma-se num jaguar e distingue-se do xamã que entoa cânticos e que cura cantando os nomes das plantas, animais e espíritos, bem como de outro tipo de xamã, capaz de viajar nos reinos aquáticos do Universo. O xamanismo está intimamente ligado à feitiçaria e, muitas vezes, as línguas locais não possuem termos específicos para o xamã que cura e para o que faz o mal. Esta ambiguidade no xamã é especialmente notória nas aldeias onde as estruturas de autoridade são fracas ou fluidas. Quando a chefia é fraca, o conhecimento trazido de outros mundos pelo xamã é particularmente importante e reconhecido como fonte de moralidade e do controle social.
Em certas partes da Amazônia, uma parte da população masculina é constituída por xamãs, embora alguns possam ser mais poderosos do que outros e a iniciação equivalha freqüentemente a uma fase essencial no desenvolvimento de uma personalidade de adulto.
Qualquer que seja a maneira como o xamã foi inicialmente escolhido, ele ou ela acabará por se adaptar a uma ordem totalmente diferente da vida diária. Tal como sucede no povo Wayapi, tanto os xamãs como certas árvores são payé – isto é, imbuídos de espírito xamânico -, de tal modo que os Guajiros, da Amazônia, dizem que uma pessoa que se torna xamã passa a ser pulasu – que é uma palavra que significa “espírito”. Nota-se que, contrariamente ao que sucede em toda a América do Sul, a maioria dos xamãs guajiros são mulheres. Não é o caso do xamã se tornar verdadeiramente um espírito, mas sim de passar a fazer parte de uma ordem de fenômenos deste mundo que também são denominados pulasu, em virtude de darem testemunhos da presença oculta constante do outro mundo. Um dos sinais de que uma pessoa foi escolhida pelos espíritos é desenvolver alergia para com a carne de determinado animal, que, para ela, é uma metamorfose ou mensageiro de um ser do outro mundo. A forma de se dizer “Eu sou alérgico a tartarugas” é “Tartarugas são pulasu para mim”.
Os xamãs não conseguem trabalhar sem auxílio, e dependem de auxiliares em tudo que fazem, de tal modo que os seus feitos não serão tão super-humanos quanto super assistidos. Para além dos assistentes vivos, que preparam os equipamento e tocam instrumentos musicais, os espíritos auxiliares vão desde um simples ancestral sábio até as fileiras serradas de espíritos guerreiros armados para a batalha e as plantas mestras.
Muito dos espíritos auxiliares são animais, uma vez que estes são animados e dotados de propriedade úteis, de que os seres humanos não dispõem. O espírito jaguar torna o xamã forte e feroz e o espírito do rato possibilita o xamã a passagem por passagens reduzidas. Os espíritos ave e peixe proporcionam ao xamã a possibilidade de se mover livremente no ar e na água. Outros espíritos professores são as plantas, e muito em especial as medicinais, venenosas ou narcóticas. Isto é especialmente freqüente no Alto Amazonas.
Os espíritos auxiliares transportam o xamã numa jornada, como uma tripulação de uma canoa. Quando o auxiliar é um animal, este serve de veículo transportando o xamã as costas. Os auxiliares previnem os xamãs de obstáculos e inimigos que surgem durante a jornada, e ajudam-no a removê-los ou a combatê-los. É freqüente proporcionarem ao xamã as habilidades mágicas e a força correspondentes às suas capacidades. Os instrumentos e as armas têm os seus próprios espíritos, que representam sua eficácia. Os xamãs enviam espíritos auxiliares como emissários, em vez de serem eles a viajar em todas as ocasiões.
Acima de tudo, os espíritos auxiliares proporcionam ao xamã o ensino. Dão-lhe instrução em técnicas mágicas e melhoram a sua percepção, com o ensino a representar ainda um processo de crescimento moral e espiritual. Não deve considerar-se apenas que um xamã iniciado tem pouca experiência nas técnicas de combate com “demônios”, mas também que um xamã jovem tem uma compreensão limitada da forma como a realidade se processa, ainda muito semelhante à de um leigo.
Quer nestas regiões da Amazônia, em que muitos elementos da população são xamãs, quer na Sibéria, onde o xamanismo é uma vocação rara e poderosa, o xamã é sempre uma pessoa que possui uma experiência e poderes extraordinários. A provação da iniciação modifica o xamã para sempre e, após a mesma, os seus poderes e experiências passam a integrar a sua personalidade recém-reconstruída. Tendo sido os causadores iniciais da experiência do xamã, os espíritos auxiliares permanecem como essência e recordação da experiência.
A identidade do xamã parece muitas vezes misturar-se de um modo estranho com a do espírito auxiliar. O auxilio de um animal ou a circunstância de o cavalgar são formas de fazer uso das propriedades do animal e abrangem uma forma de pensar e de sentir de certo modo semelhante à do animal. Nesta altura, as várias propriedades mantém-se externas à pessoa, e um simples passo em frente é o que basta para se tornar o animal e receber totalmente as suas propriedades na sua própria essência.
Tal como se passa com os espíritos auxiliares, os espíritos hostis interpretam-se como correspondendo a algo que existe na própria psiquê do xamã. A floresta, os locais ermos e desolados do mundo inferior são locais para além do alcance da cultura do homem, e corresponderão talvez ao inconsciente que a psicanálise define. A distinção que existe entre espíritos bons e maus não é geralmente tão definida em certas religiões dualistas, como o cristianismo. Tal como as forças da natureza, os espíritos ajudam ou destroem. A tarefa do xamã é conseguir sua cooperação, persuadi-los e, caso insistam em atuar contra o xamã, impedi-los de fazer. A luta entre os espíritos benignos e hostis refletem a natureza ambivalente não só do mundo mas também do xamã e da própria humanidade.
Na selva amazônica os espíritos residem em determinadas espécies de enormes árvores que se amontoam nas regiões alagadiças. O rio Amazonas e seus afluentes dominam uma grande parte da América do Sul, e a enorme diversidade biológica nas águas e na floresta que as envolve permite elaborados usos das plantas medicinais, que emprestam ao xamanismo amazônico um sentido especial.
Embora as plantas psicotrópicas se encontrem em quase todas as regiões, a sua utilização está mais desenvolvida no Novo Mundo, e em especial na América do Sul.
Para os xamãs amazônicos, as plantas são realmente espíritos professores, e, ao ingeri-las, conseguem para si próprios as propriedades dos espíritos. O que as plantas revelam não é um desvio da realidade mas uma realidade verdadeira, que se mantém escondida num estado de consciência normal. Os Desanas são incapazes de entrar em contato com qualquer espírito, como por exemplo, o Mestre dos Animais sem primeiro passarem pelo espírito Viho-Mahse, que é o mestre da planta “viho”. Por outras palavras, é a ingestão da planta “viho” que dá acesso ao mundo dos espíritos. A realidade revelada pela Planta Mestra não se enquadra numa rejeição da sociedade, mas sim uma completa interação do indivíduo com os outros. Por conseguinte, e enquanto alguns grupos indígenas na Colômbia reserva o epena exclusivamente para o xamãs, entre os Yanomanis, na fronteira do Brasil com a Venezuela, todos os homens e rapazes que já ultrapassaram a idade da puberdade tomam regularmente o epena, e seu uso representa de fato uma forma de iniciação.
A cura com as Plantas Mestras baseia-se amiúde na interpretação pelo xamã de uma visão vivida pelo paciente, que poderá tornar-se introspectivo sob a influência da Planta Mestra e rever criticamente o curso da sua própria vida e relações sociais.
Uma vez que existem espíritos amigáveis e espíritos hostis, também as visões que se têm podem ser benignas ou terríveis. Embora os nativos insistam que as visões vem dos espíritos, quem acredita no inconsciente aceita uma interpretação idêntica à que atribui aos próprios espíritos e, designadamente, que a origem da visão se situa na mente da pessoa e que a mesma depende do que tenha ingerido.
Entre os Baniwa os “Payés” são considerados homens sábios, capazes de profetizar acontecimentos, além de realizarem curas milagrosas. Eles são conhecidos como “Mestres do Povo Jaguar” ou “Jaguares do Paricá”. Estes “Payés” fazem uso da Planta Mestra Paricá. O Paricá é um rapé feito da semente da árvore piptadenia. Eles são mestres também em misturá-las a Ayawaska. Eles transformam-se em jaguar tomando uma dose excepcionalmente grande do Paricá. Quando morre, o xamã poderá transformar-se para sempre num jaguar.
Nas tribos dos Baniwa encontramos dentro do xamanismo não só a figura do “Payés”, mas também os donos-de-cantos que têm papéis e atributos distintos mas complementares que diferenciam as suas práticas, mas não de modo exclusivo. Os “Payés” podem ser donos-de-cantos e vice-versa. As diferenças parecem residir antes na maneira de formação, curas e qualidades do conhecimento que cada um domina.
Os “Payés” chupam – isto é, extraem por sucção objetos pantogênico dos seus pacientes, enquanto os donos-de-cantos “sopram” ou, como eles dizem, “rezam”, cantando ou recitando fórmulas com o tabaco sobre ervas e plantas medicinais a serem consumidas pelos pacientes. Somente os “Payés” usam marakás e o paricá nas suas curas; para os donos-de-cantos, o tabaco e uma cuia d’água são os instrumentos principais. Essas diferenças de prática, porém são vinculadas sistematicamente a princípios cosmológicos antitéticos. De tal forma que a palavra “Payé” é somente usada para referir-se aos “chupadores” e não aos donos-de-cantos ou “rezadores”. Entre os dois tipos de curadores, os “Payés” são considerados mais importantes dentro da tribo, tem um status superior, pois além de curar, eles aconselham e orientam o seu povo, desempenhando assim, um dos serviços mais vitais para a saúde e bem-estar contínuo da comunidade.
Em meus estudos na selva amazônica, na fronteira Equador/Peru, tive a oportunidade de passar setenta dois dias entre o povo Shuar/Jívaro e conhecer suas práticas xamânicas, o que muito contribuiu para o meu desenvolvimento. Foi lá que adquiri tsentsak, setas mágicas também conhecidas pelo nome de “virotes”, que são essenciais para a prática do xamanismo Shuar/Jívaro. É através do poder dos Tsentsak que é possível curar as doenças.
Geralmente os maleros (maus feiticeiros) mandam esses espíritos auxiliares para atingir o corpo da vítima, a fim de atormentá-la, deixando-as doentes ou matá-las. O Uwishin (Pajé) utilizam seus próprios tsentsak para auxiliá-los a sugar os espíritos dos corpos do doente. Esses espíritos auxiliares formam escudos que, com o poder do espírito guardião do Uwishin (Pajé), protejem seus “mestres” xamãs dos ataques.
Um xamã noviço reúne todos os tipos de insetos, plantas e outros objetos, que se tornam seus espíritos auxiliares. Quase todos objetos, incluindo insetos vivos e vermes, podem se tornar um tsentsak, se forem pequenos o bastante para serem engolidos por um xamã. Diferentes tipos de tsentsak causam diferentes tipos ou graus de doença, e são usados para a cura. Quanto maior é a variedade desses objetos poderosos que um xamã tem em seu corpo, maior é sua capacidade como curandeiro.
Cada tsentsak tem um aspecto comum e um aspecto incomum. O aspecto comum de uma seta mágica é o de um objeto material comum, quando visto sem tomar Ayawaska ou Maikua (Brugmansia, conhecido também como Beladona). Mas o aspecto incomum e “verdadeiro” do tsentsak é revelado ao xamã que toma a Planta Mestra. Quando o faz, a seta mágica aparece em sua forma oculta, como espírito auxiliar, tal como borboletas gigantes, jaguares, serpentes, pássaros e macacos, que dão assistência ativa ao xamã, em suas tarefas.
Quando o Uwishin (Pajé) é chamado para tratar de um paciente, sua primeira tarefa é o diagnóstico. Ele bebe suco de tabaco, Ayawaska, e, às vezes, o suco de uma planta chamada pirípiri, quando chega o fim da tarde e a noite se inicia… enquanto agita ritmicamente shishink (chocalho de folhas de mandioca) chamando seu espíritos auxiliares para ajudá-lo no processo de cura. As Plantas Mestras que ele ingeriu ajudam a modificar sua consciência permitindo-lhe ver o interior do corpo do paciente como se ele fosse transparente. Se a doença foi causada por feitiçaria, o xamã curandeiro verá a entidade intrusa no corpo do paciente, de forma nítida o bastante para determinar se possui o espírito auxiliar apropriado para extraí-la por sucção.
O xamã suga as setas mágicas de um paciente à noite, e num lugar escuro da cabana, pois só na escuridão ele pode ver a realidade incomum. Com o por-do-sol, ele alerta seu tsentsak assobiando sua canção de poder; depois de cerca de quinze minutos começa a cantar, enquanto joga fumaça de tabaco no rosto do paciente através de um charuto. A fumaça nutri os espíritos auxiliares que auxiliam o Uwishin a identificar as enfermidades no corpo do paciente. Quando está pronto para sugar, o xamã mantém dois tsentsak, de tipo idêntico ao que viu no corpo do paciente, na parte da frente e no fundo da boca. Eles estão presentes tanto em seu aspecto material como não-material, e ali estão para apanhar o aspecto incomum da seta mágica, quando o xamã o suga do interior do corpo do paciente. O tsentsak próximo dos lábios do xamã tem a tarefa de incorporar a essência sugada em si próprio. Se, entretanto, essa essência incomum passar por ele, o segundo espírito auxiliar, na boca, bloqueia a garganta, para que o intruso não possa entrar no corpo do xamã e fazer-lhe mal. Ao cair assim na armadilha dentro da boca, a essência bem depressa é apanhada e absorvida pela substância material de um dos tsentsak do xamã curandeiro. Então, ele “vomita” o objeto e mostra-o ao paciente e à sua família.
Aquele que não é xamã pode pensar que o próprio objeto material é que foi sugado, e o xamã não o desilude disso. Ao mesmo tempo, não está mentindo, porque sabe que o único aspecto importante de um tsentsak é o imaterial ou o aspecto incomum, ou essência, o qual o xamã acredita sinceramente ter removido do corpo do paciente. Explicar ao leigo que já tinha aquele objeto na boca de nada valeria, e o impediria de mostrar tal objeto como prova de que havia efetuado a cura.
A capacidade que o xamã tem de sugar depende em muito da quantidade de força dos seus tsentsak, dos qual ele pode ter centenas. Suas setas mágicas assumem o aspecto sobrenatural de espíritos auxiliares quando ele está sob a influência da Ayawaska e os vê como uma variedade de formas zoomórficas pairando sobre ele, empoleirando-se em seus ombros e saindo da sua pele. Vê que eles o estão ajudando a fazer a sucção no corpo do paciente. Bebe suco de tabaco quase toda hora para “mantê-los alimentados”, a fim de que eles não o deixem.
Um xamã curandeiro pode ter um tsentsak enviado por um feiticeiro. Por causa desse perigo, os xamãs devem repetidamente beber suco de tabaco, a todas as horas do dia e da noite. O suco de tabaco ajuda o tsentsak do Uwishin (Pajé) a estar pronto para repelir quaisquer outras setas mágicas. Um xamã não sai para uma caminhada sem levar consigo as folhas verdes de fumo, com as quais prepara o suco que mantém seus espíritos auxiliares em alerta. Geralmente o espírito guardião repousa no peito do xamã, embora seu poder emane por todo corpo.
O Xamanismo amazônico está afastado do australiano, africano e de muitas outras tradições que há muito tempo vêm praticando o xamanismo sem o emprego de plantas psicotrópicas. Ainda assim, como podemos ver, o xamanismo na Amazônia é altamente desenvolvido, dramático e emocionante.
Wagner Frota