O vôo xamânico é o aspecto mais característico dentro do xamanismo, conhecido também pelo nome de jornada ou viagem xamânica. Geralmente, o vôo xamânico é realizado durante a noite porque as imagens podem ser tênues em outras dimensões da realidade que o xamã vivência, ao ver-se em complexos mundos de luzes, sons e outras imagens, sendo comum o encontro com figuras espirituais arquetípicas. Estas por sua vez, são nitidamente consistentes com as experiências do nível sutil e, segundo Ken Wilber, os xamãs foram os primeiros a acessar esse nível de modo sistemático.
Os céticos podem questionar que tais experiências não passem de meras fantasias ou até mesmo alucinações e que não há razão para invocar qualquer estado transpessoal ou espiritual. Essas críticas são até compreensíveis, pois não existe um mapeamento eficaz para estudar os estados de consciência. Ainda existem muitas perguntas sem respostas. Tais como: O que constitui exatamente as experiências sutis? De que maneira podemos diferenciá-las de nossa fantasia habitual? Será que podemos diferenciá-la?
Atualmente, essas questões não podem ser respondidas definitivamente. No meu modo de pensar, a fantasia comum e as experiências do nível sutil fazem parte de um continuum. Ambas são criações da mente, mas existem algumas diferenças entre elas. As experiências do nível sutil ocorrem em estado alterado caracterizados por um aumento da sensibilidade à vivência interior. Os objetos da percepção consciente são de fato sutis e, por isso, podem ser reconhecidos apenas em estados sensíveis e circunstanciais favoráveis, ao passo que a fantasia comum é relativamente intensa e reconhecível com facilidade. A escala aparente das experiências sutis pode ser muito maior que a das fantasias comuns. Mundos inteiros, inclusive universos, aparecem, nascem, fazendo a terra parecer uma bola e nada mais. Nos estados sutis, ainda aparece existir a probabilidade de se encontrarem imagens e temas espiritualmente significativos, além de figuras arquetípicas como anciões, espíritos animais, entre tantos outros seres e entes que fazem parte de outra camada da vasta cebola que é o universo xamânico. Por outro lado, nossas fantasias habituais em estado de vigília tendem a focalizar assuntos mais mundanos.
Nenhuma dessas características é capaz de por si só, distinguir a fantasia comum da experiência de nível sutil. Em conjunto, porém assinalam diferenças que, pelo menos para a pessoa que as vivencia, podem ser muito grandes em seu alcance, sutileza e significação.
Os xamãs com certeza foram os primeiros mestres desse reino sutil. Sua especialidade é a “viagem da alma”, em que se percebem sendo desalojados do corpo. Como almas libertas, viajam através desses reinos sutis, dominando e apaziguando seus habitantes, e voltando com informações e poder desse mundo para ajudar os companheiros presos no nível da terra.
Embora os xamãs vivenciem-se como almas livres, através do seu corpo luminoso, separados dos outros seres e de outras camadas da cebola, muitas vezes podem unir-se com outros espíritos. Em certas tradições religiosas, a sensação de ser um indivíduo separado pode dar lugar à vivência de união não só com outros indivíduos, ou espíritos, mas também com o universo inteiro ou até mesmo o criador. Assim, nos níveis mais elevados do reino sutil, podem ocorrer formas da união mística tão celebrada e buscada pelos místicos do mundo.
Mais perguntas sem respostas surgem. Será que os xamãs alguma vez vivenciaram essa união mística? Não há nenhuma evidência sobre isso pelas tradições que passei e estudei. Será então que o xamanismo não pode ser considerado uma forma de misticismo, já que o misticismo não se restringe só a união mística?
Talvez pelo fato de o xamanismo ser uma tradição oral, as vivências de união mística podem ter ocorrido pelo menos ocasionalmente, mas terem se perdido nas gerações seguintes, tornando-se, portanto inacessíveis aos antropólogos. Sem a escrita, não pode haver um meio mais adequado de preservar o registro dos mais raros e elevados frutos de uma tradição.
Embora não seja um elemento essencial ao xamanismo, o uso de psicotrópicos é comum em algumas áreas. O Peiote, o Wachuma e a Ayahuaska, por exemplo, são substâncias poderosas capazes de induzir experiências que algumas autoridades consideram como genuínas vivências místicas.
Nós que somos treinados em práticas xamânicas podemos relatar vivências de união. Eu inclusive passei por algumas delas, que me pareciam mais união com o universo do que com uma divindade. Então no meu modo de ver, isso indica que de fato existem diferentes tipos de união mística e que a experiência da união com o universo é um exemplo do assim chamado misticismo natural, em vez do teísta, que visa a união com uma divindade. Embora as vivências de união possam não ser alvo das viagens xamânicas, este estado pode ocorrer, o que vem a provar que o xamanismo pode ser considerado uma tradição potencialmente mística.
Sendo assim, os xamãs foram além das metas de sua própria tradição, vez por outra. Então, surge a questão de que se os xamãs foram de fato além dos estados sutis e tiveram acesso ou não aos planos causal e absoluto. Encontramo-nos aqui em território incerto e parece impossível afirmar qualquer coisa de forma taxativa. Contudo, três linhas de evidência sugerem que os xamãs eventualmente atingiram tais níveis. Primeiro em qualquer tradição, podemos encontrar alguns adeptos que atingem âmbitos do campo de consciência que se situam mais além daqueles almejados pela prática realizada.
Em segundo lugar, os psicotrópicos parecem desencadear, às vezes, experiências causais ou absolutas.
A terceira linha de evidências vem do padrão incomum de respostas a um determinado teste psicológico, com o nome de Rorschach que foi aplicado em um xamã Jiricaua do sudoeste americano, que mostrou acentuada semelhança com o de um mestre budista tibetano. O que nos leva a pensar que os dois atingiram a percepção causal do campo da consciência, conforme foi demonstrado no teste com Rorschach, chegando as duas tradições a esse nível. Por outro lado, pode ser que o domínio espiritual de qualquer tradição resulte em mudanças similares de personalidade e que, por isso, tenham ocorrido respostas parecidas ao teste psicológico.
Quando as consideramos em conjunto, essas linhas de evidência sugerem que, embora a tradição xamânica tenha objetivado a viagem da alma até o âmbito sutil, alguns xamãs também investigaram os planos causal e absoluto. Independente do número de xamãs que lá chegaram, parece que eles foram os primeiros heróis transpessoais da humanidade, os primeiros a romper de maneira sistemática sua identificação com o corpo e o mundo; os primeiros a entrar de forma sistemática nos planos transpessoais; e os primeiros desbravadores dos planos sutis.
Se for verdade que os xamãs foram os primeiros seres humanos a ter acesso sistemático a estados e vivências transpessoais, como eu acredito, seus estados e viagens podem representar um salto significativo para a humanidade, um avanço considerável na evolução da consciência. Pois, se existe latente em todos nós a capacidade de ter acesso aos estados do nível sutil, surge a questão de se os xamãs foram ou não nossos precursores evolutivos. A resposta depende do que cada um pensa que seja evolução.
Ao longo de quase toda a história da humanidade, o tempo foi considerado não tanto como um avanço evolutivo, mas como ciclos de dia e noite, inverno e verão, nascimento e morte. A idéia de que o tempo está indo em alguma direção, de que existe um processo evolutivo acontecendo é uma idéia recente, e que a cada dia mais se consolida no pensamento ocidental. Então não é de se espantar que a própria consciência ainda seja vista como algo que evolui. Essas idéias foram propostas por pensadores luminares como Aurobino, Jean Gebser, Ken Wilber e Teilhard de Chardin. Iremos aqui nos deter no trabalho de Wilber, que integra a essência dos pensadores mencionados.
Wilber sugere que, assim como o estado sutil, causal e absoluto emerge em sequência nos contemplativos contemporâneos, apareceram segundo uma sequência também dentro da história humana. Portanto, ele oferece a noção segundo a qual os estados sutis foram os primeiros estados transpessoais que a humanidade conheceu. Essa percepção foi seguida, milhares de anos mais tarde, pela vivência do plano causal e, centenas de anos depois, pela descoberta da consciência absoluta.
O estado sutil, segundo propõe Wilber, emergiram no alvorecer da pré-história com os xamãs. Os causais, ele localiza em torno de dois mil e quinhentos anos atrás com os sábios Upanixades, Taoístas, Buda e Jesus. O plano absoluto é por ele situado por volta do século VI d.C. Está ligado a sábios como Bodhidharma, na China, e Padmasambhava, no Tibete.
Onde se encaixam os xamãs nessa ascensão evolutiva da consciência? Wilber coloca-os no início desse vasto processo e considera-os os primeiros heróis espirituais, os primeiros humanos a desenvolverem uma sistemática tecnológica de transcendência, os primeiros a terem acesso sistemático aos estados sutis. Embora possam ter ocasionalmente rompido a barreira e penetrado no âmbito causal, seu foco principal estava bem assentado sobre determinadas vivências e estados sutis. Sua mitologia e tecnologia eram destinadas a auxiliar as pessoas a chegarem nesse estágio.
Durante milhares de anos, os xamãs talvez tenham sido o único elo organizado da humanidade com o plano da transcendência. Não foi senão séculos, milênios ou mesmo milhares de anos depois dos primeiros xamãs que se desenvolveram tecnologias para um acesso sistemático aos planos causal e absoluto.
As tecnologias das tradições espirituais que produzem as vivências causal e absoluta parecem conter quatro elementos comuns de prática: um rigoroso sistema ético, uma transformação emocional, o treino da atenção e da concentração e o cultivo da sabedoria. Diferentes caminhos focalizam alguns destes aspectos mais que outros, mas todos os quatro parecem estar presentes, em graus variados, nas tradições autênticas e absolutas.
As várias tradições têm focalizado preferencialmente alguns desses quatro componentes, mas todos os caminhos autênticos parecem valer-se dos quatro, em extensões variáveis. O treinamento ético pode ser universal. O treino da atenção, a ponto da estabilidade inabalável, tem sido o ponto central do yoga clássico. A transformação emocional e o cultivo do amor têm sido o foco central do bhakti yoga e do cristianismo, enquanto o budismo tibetano vem salientando a compaixão. A sabedoria tem sido alvo do jinana yoga e de algumas escolas do budismo.
Os precursores desses treinamentos da ética, da emoção, da atenção e da sabedoria podem ser localizados no xamanismo. O melhor desta tradição tem sido há muito tempo o que se baseia numa ética de compaixão e serviço. Um certo grau de transformação emocional, especialmente a diminuição do medo, é um componente essencial desse treinamento. Por exemplo, os xamãs australianos aborígenes são advertidos das visões aterrorizantes com que irão confrontar durante seu treinamento e são instruídos a não ceder diante do medo.
Os xamãs têm sido muitas vezes descritos como pessoas dotadas de um poder de concentração. Embora não tenham como objetivo um grau extraordinário de atenção inabalável, cultivados pelos yogues modernos, por exemplo, está claro que um árduo treinamento da atenção fazia, às vezes, parte do treinamento xamânico. Tais como permanecer dias em jejum enterrado dentro de grutas e cavernas, visando renascer da Terra.
Dessa maneira, parece que tem havido uma evolução significativa na tecnologia da transcendência, desde que alguns dos primeiros seres humanos descobriram que, se uma pele esticada fosse percutida, emitia um som e que este, sendo repetido ritmicamente por percussão, acarretava uma vivência curiosa e gostosa. Os xamãs recordaram e recriaram essas descobertas aleatórias e organizaram-nas numa coleção eficiente de técnicas e sabedoria que poderiam ser transmitidas por sucessivas gerações. Milênios de anos depois, os primeiros sábios refinaram alguns aspectos da tecnologia xamânica e ampliaram-na com as próprias informações técnicas, permitindo assim que a humanidade descobrisse os níveis causal e absoluto da percepção consciente.
Creio que parece ser uma ocasião oportuna para comentar quais são algumas das dificuldades relativas de ter acesso a experiências dos níveis sutil, causal e absoluto. A questão crucial ao meu ver é: que porcentagem de praticantes de fato atinge o nível de conscientização almejado pelas diferentes tradições? Temos alguns indícios, mas muito poucos dados concretos. Esses indícios sugerem que pode ser significativamente mais fácil atingir um certo grau de percepção consciente xamânico do que chegar nos objetivos das tradições ulteriores.
Michael Harner, por exemplo, confirma que, segundo sua experiência, cerca de 90% dos participantes de workshops de xamanismo são capazes de começar a realizar viagens xamânicas. Por sua vez, quando se trata de tradições mais recentes, a sensação geral é que, por exemplo, para os contemplativos cristãos, os yogues indianos, os meditantes budistas e o neo-confuncionistas, relativamente poucos indivíduos chegam a vivenciar de fato constatações conscientes e significativas, e isso, quase sempre, apenas depois de muitos anos de um árduo treinamento. Diz-se por exemplo, que apenas um em cem mil budistas meditantes tem chances de dominar as práticas avançadas de concentração.
Isso sugere que existe uma relação entre o estágio de desenvolvimento e seu momento, frequência e facilidade de descoberta. Em geral, quanto mais elevado o estágio de desenvolvimento, mais tarde emergirá, tanto nos praticantes individuais como na história, e menor a porcentagem de adeptos que de fato chegarão a esse nível. É consistente com essa relação o fato de o xamanismo ter sido a mais precoce das tradições a emergir e que até nos dias de hoje permita às pessoas um acesso relativamente fácil a estados alterados e suas constatações e introvisões correspondentes.
Essa facilidade relativa pode ser uma das principais razões para a atual popularidade do xamanismo no Ocidente. O xamanismo continua a oferecer, hoje, o que vem oferecendo a humanidade há centenas de milhares de anos: um meio, mais ou menos, fácil, e praticamente único, durante quase toda a história da humanidade, de controlar o acesso à transcendência. Portanto, os xamãs podem ser considerados os precursores dos inúmeros sábios de outras tradições e os fundadores originais da “grande tradição”, a soma total da sabedoria religiosa-espiritual da humanidade.
Wagner Frota