Trava-se entre os estudiosos um persistente debate sobre se o xamanismo é ou não uma vocação culturalmente atribuída às pessoas mentalmente perturbadas, em particular os esquizofrênicos. Embora esta posição constituísse o ponto de vista antropológico até meados do século passado, hoje ela tem poucos partidários. Entre os mais freqüentemente citados, estão Devereux, que sustenta com firmeza que não há motivo para não considerar os xamãs neuróticos, e até mesmo psicóticos; e Silverman, que associa o estado xamânico de consciência à esquizofrenia aguda. Por outro lado, Jilek acha o rótulo de patologia “absolutamente insustentável”, após seus anos de experiência com xamãs na América do Norte, África, Haiti, América do Sul, Tailândia e Nova Guiné. Ele tem formação em psiquiatria e antropologia, e acredita que a opção pela patologia será progressivamente refutada, à medida que se expandir o campo da psiquiatria transcultural.
Um artigo da autoria de Richard Noll, recapitula as colocações dos dois pólos da controvérsia e conclui que metáfora da esquizofrenia de um fracasso em discriminar diferenças fenomenológicas entre o estado xamânico de consciência e o estado esquizofrênico de consciência. Ele afirma que a distinção mais importante é pertinente à violação: o xamã, como “mestre do êxtase”, entra e sai conforme deseja do estado alterado; o esquizofrênico não tem controle algum sobre esta atividade e é uma infeliz vítima da desilusão, com uma notável deterioração no desempenho dos papéis. Harner enfatiza que o xamã deve comportar-se de modo apropriado tanto na realidade ordinária, como no estado xamânico de consciência para ser uma pessoa em que se possa acreditar e manter seu status na comunidade. Distinguir conteúdos dos diferentes níveis de realidade é impossível para o esquizofrênico, mas, conforme coloca Noll, “a validade de ambos os reinos é reconhecida pelo xamã, cuja mestria deriva de sua capacidade de não confundir os dois”.
Sem querer estender-me demais nesse assunto, seria de esperar que ele padecesse de morte natural por falta de provas em apoio da posição favorável à esquizofrenia, gostaria de mencionar duas questões relevantes. A primeira delas é uma reafirmação de que o problema da identificação entre o papel e a pessoa do xamã, bem como do místico, decorre da categorizarão psicológica ocidental de todos os comportamentos que não sejam “normal” (ou comum à maioria) como desviante no sentido negativo. A psicologia tradicional não dispõe de arcabouço teórico para abarcar o “supranormal”, o gênio criativo, o altamente imaginativo, a pessoa que entra em estados alternados de consciência por sua própria vontade, exceto para classificar esse indivíduo como mentalmente doente ou muito próximo disto. As novas teorias do desenvolvimento da personalidade, propostas por Ken Wilber, Elmer e Alyce Green, e as visões da psicologia propostas por James Hillman, incluem o conceito de que “normal” não é, de modo algum, a possibilidade mais evoluída.
A segunda questão é que tem havido uma tendência, de alguns observadores, de elevar o status tradicional da esquizofrenia e da epilepsia, considerado-as capazes de potencializar um tremendo insight e uma percepção psicológica que não diferem dos relatados pelos místicos. A prática, antiga e amplamente difundida, de conceder aos epilépticos um posição favorecida nas fileiras do xamanismo, as observações segundo as quais o êxtase xamânico assemelha-se a uma espécie de ataque controlado, e a forte angústia física e mental associadas à iniciação ou “apelo divino” do xamã devem ser melhor investigadas.
As pessoas diagnosticadas esquizofrênicas e com algumas formas de epilepsia têm em comum uma atividade mental excepcional elevada. Em alguns tipos de epilepsia, as ondas cerebrais do paciente são caracterizadas por repentes de uma atividade cerebral persistente, inicialmente localizada, mas que se expande, recrutando a participação de outros neurônios, até haver uma exploração elétrica, que resulta em um ataque, seguido de um estado de coma. É possível que ocorram outras, alucinações, intensa atividade motora e fenômenos sensoriais estranhos. O esquizofrênico também se vê diante de um desencadear de imagens mentais, de tal modo que a figura não fica bem separada do fundo e o mundo interior torna-se um zumbido ativo e incoerente. A experiência interior e os fatos percebidos por meio dos sentidos não são bem discriminados. Devido à violência do bombardeio dos neurônios, é possível que os pacientes esquizofrênicos e epilépticos possam vivenciar tudo que a mente tem a oferecer, desde imagens as mais primitivas, pré-verbais, até vislumbres de paisagens transcendentais de que falam xamãs e místicos.
Conforme colocou Wilber, sobre o esquizofrênico: “A desorganização das funções de filtragem e de editoração da translação egóica (processo secundário, princípio da realidade, estruturação da sintaxe etc.) deixa o indivíduo aberto e desprotegido nos níveis mais baixos e mais elevados da consciência”. E ao discriminar o estado místico da fenomenologia do esquizofrênico, ele admite que o místico está explorando e se assenhorando de alguns planos mais elevados que se apoderam do esquizofrênico. Em contraste, “o místico procura uma evolução progressiva. Prepara-se para isso. Tendo sorte, precisará da maior parte de sua vida para chegar às estruturas permanentes, maduras, transcendentais e unitárias”. Ele afirma também que “o misticismo não é regressão a serviço do ego, mas evolução por transcendência do ego”. Os estudiosos contemporâneos, que vêem um estado de consciência evoluído como pré-requisito para a vocação, com toda certeza poderão concordar que essa colocações são representativas dos xamãs.
Devemos considerar que comparações entre os diferentes estados de consciência, geralmente são superficiais. E como podemos constatar, muitas pessoas concluíram que não há diferença entre xamanismo e esquizofrenia. Mas se fizermos um mapeamento vivencial é possível comparar diversas dimensões da experiência. Sendo assim, podemos descartar comparações unidimendionais para adotarmos as multidimensionais, distinguindo uns estados dos outros com uma maior exatidão.
Apesar da evolução da ciência não existe ainda instrumentos que possam comprovar o que aqui estamos discutindo, e talvez seja por causa disso, que muitos ainda teimam em dizer que os estados xamânicos são os mesmos que os da esquizofrenia, do budismo e do ioga. Outras pessoas procuram comparar os xamãs com mestres de várias tradições espirituais, especialmente o budismo e o yoga, afirmando que o estado xamânico são idênticos aos dessas tradições. Se compararmos esses estados com cuidado, poderemos ver claras distinções entre elas.
Aqueles pesquisadores que querem comparar os estados xamânicos com outras tradições, tem pela frente uma tarefa muito complexa, pois eles necessitarão de realizar comparações múltiplas entres estados múltiplos, em múltiplas dimensões. Fato que desconheço até os nossos dias atuais.
Comparando os estados de consciência do Yoga e do Budismo, com o Xamânico, podemos notar que essas três disciplinas trabalham muito o autocontrole. Eles são capazes de entrar e sair dos respectivos estados conforme desejarem, embora alguns deles precisem de uma ajuda externa como o som do tambor, psicoativos, mandala ou mantra. Os xamãs como os meditantes exercem um controle parcial sobre suas vivências em estados alterados de consciência, já os yogues em Samadhi têm um controle quase completo sobre o pensamento e outros processos mentais.
Existe diferenças consideráveis entre os três estados, quanto a sensibilidade perceptual ao meio ambiente. Essas diferenças na percepção do meio externo estão refletidas nas diferenças de comunicação. No caso do xamã, ele pode comunicar-se com qualquer um que o esteja assistindo durante sua jornada xamânica. Já se o yogue pensar em falar, isso é o suficiente para romper sua concentração.
O treinamento para a concentração parece estar bastante difundido pelas práticas espirituais autênticas, entre as quais o xamanismo, budismo e o yoga, mas o tipo e a profundidade da concentração podem diferir de forma acentuada. Tanto no xamanismo como no budismo, a atenção se desloca de modo fluido de um objeto para outro. Isso é muito diferente do que se pratica nos estágios avançados do yoga, em que a atenção fica imobilizada em um único objeto.
Existem ainda diferença significativas nos níveis energéticos e de excitação. Xamãs estão quase sempre excitados durante a viagem e podem dançar ou mostrar extrema agitação. Os budistas, desenvolvem a sua calma cada vez mais. Já no samadhi yogue, a calma pode ser tão profunda que muitos processos mentais cessam temporariamente.
A sensação de identidade difere muito entre as três práticas. O xamã em geral conserva a noção de ser um indivíduo com contornos próprios, embora algumas vezes se identifique com um espírito, ao invés de com seu corpo. O budista com sua visão microscópica, torna-se tão sensível que é capaz de dissecar seu senso de quem é nos estímulos que o compõem. Nessa medida o meditante percebe não um ego sólido e imutável, mas ao invés disso, um fluxo incessante de pensamentos e imagens que compõem o ego. Essa é a vivência do “não eu” em que a noção de um ego egóico permanente é tida como ilusória. Essa ilusão de um eu ou um ego contínuo é um produto da percepção consciente imprecisa que parece ser muito semelhante a um filme contínuo, composto de uma sequência de imagens paradas. A precisa percepção consciente do budista enxerga em meio a essa ilusão egóica e, assim, liberta-os das perspectivas egocêntricas de pensamento e ação.
A vivência do yogue é outra vez diversa. Nos estágios mais elevados de meditação, a atenção está fixamente detida no campo da consciência. Nada permanece no foco da percepção consciente, além do próprio campo de consciência e, por conseguinte, é isso o que o yogue vivencia com sua natureza: consciência pura, inefável, abençoada, além do tempo, do espaço e de qualquer limitação. Isso é o samadhi, o mais alto grau do yoga. É essa experiência, a união entre o eu e o Self, que dá o yoga, que significa união, seu próprio nome. Essa abençoada união é totalmente diferente das vivências às vezes agradáveis, às vezes dolorosas, que tanto o xamã como o meditante budista podem ter.
A vivência de consciência pura que o yogue conhece também contrasta de modo radical com as imagens complexas das viagens que inundam a percepção consciente do xamã. O budista ainda tem um terceiro tipo de vivência. Nesta, a percepção consciente torna-se tão sensível a todas as experiências que, com o tempo, fragmentam-se em seus componentes e o meditante percebe um fluxo incessante de imagens microscópicas que surgem e desaparecem com extrema rapidez.
Uma das características que define o xamanismo é o vôo da alma, que é uma forma de experiência extracorporal ou êxtase. Nem o yogue pode atingir tal nível de concentração interior, aliás, que acaba perdendo toda a percepção de seu corpo e afunda na vivência do samadhi, aquela benção interna que, às vezes, é conhecida como enstase. Segundo Eliade: “O yoga não pode ser de forma nenhuma confundido com o xamanismo ou classificado como uma técnica de êxtase. O objetivo do yoga clássico permanece sendo a autonomia perfeita, a enstase, enquanto o xamanismo é caracterizado por um esforço desesperado para alcançar a “condição de um espírito”, realizar o vôo extatico.”
Comparando essas três tradições com a esquizofrenia que falamos anteriormente, acredito que talvez por o xamã estar na maioria das vezes excitado, algumas pessoas teimam em compará-los ao esquizofrênicos. Mas, no meu modo de ver, aquelas pessoas que dizem que os xamãs são esquizofrênicos, e que não existe uma diferença entre os estados de consciência do xamanismo e da esquizofrenia, estão assumindo que só existe um estado alterado de consciência dentro do xamanismo. É nesse ponto que essas pessoas se enganam, pois existem diversos estados xamânicos de consciência, como também acredito deva ocorrer o mesmo com a esquizofrenia. Pelo que pude observar e ler, os episódios de esquizofrenia são arrasadores, desestruturando todas as emoções, pensamentos, e percepção da realidade, fazendo com que percam a identidade.
Comparando esse estado com o estado xamânico de consciência, notamos que as pessoas que sofrem de esquizofrenia não conseguem ter o controle de suas ações, vivem tendo alucinações, perdendo a capacidade de discriminar o que ele é. Enquanto isso, dentro da viagem xamânica, o xamã tem controle de suas ações. Ele consegue sair e voltar para o seu corpo a hora que quiser, já o esquizofrênico parece que vivem numa viagem sem retorno.
Na realidade, o processo da esquizofrenia tem a ver com uma desestruturação violenta da realidade e do ego. Não que o esquizofrênico “alucine” coisas que não existem. Simplesmente, ele está percebendo coisas que existem, mas organiza-as no plano psíquico e emocional de maneira diferente da ordinária, ou está percebendo coisas que as pessoas normais em geral desconsideram inconscientemente, do que resulta a percepção de uma realidade diferente, que no caso do esquizofrênico é angustiante e muitas vezes auto-destrutiva. A dita desestruturação se experimenta como uma perda de certeza quanto ao que é ou não real, inclusive o próprio ego, que perde a sua continuidade, uma vez que a estrutura que lhe dá forma se “desmonta”. Nesse ponto, o esquizóide pode ter sérias dúvidas sobre a sua identidade, porque carece de certeza corrente a respeito dos traços que a configuravam; sendo o ego a referência fundamental da conduta, quando aquele se desestrutura, esta é atingida seriamente, podendo parecer errática, imprevisível ou desconexa.
Fora os casos de lesão cerebral ou mal formação genética, o esquizofrênico é na verdade um indivíduo que entrou num processo de desestruturação descontrolado, mesmo que não esteja ciente disso, e entrou nele por motivos semelhantes aos do xamã. A busca de um jeito alternativo de ser, a renúncia a uma normalidade doentia, cujo preço é o tédio e a angústia, quando não a dor e a depressão. A esquizofrenia é uma busca desesperada e errática da liberdade. É que o esquizofrênico caiu nesse estado geralmente como consequência de uma crise existencial de grandes proporções, da qual não conseguiu recuperar-se. Por isso, costuma-se dizer que ele “ficou na viagem”.
Mas essa “viagem” ia para algum lugar. Dirigia-se à libertação de uma existência opressiva. Apenas não achou o caminho certo; não teve força bastante para chegar ao seu destino.
É até compreensível que alguns pesquisadores tenham rotulado os xamãs de esquizofrênicos, mas está claro que xamanismo e esquizofrenia são fenômenos absolutamente diversos.
Em resumo, as alegações de que os estados xamânicos são idênticos aos da esquizofrenia, do budismo ou do yoga parecem ter sido baseadas em comparações imprecisas e tanto a teoria como os dados sugerem que esses estados são muitos distintos entre si. Mais preciso, embora ainda preliminar, o mapeamento multidimensional e as comparações de estados alterados são possíveis hoje. As comparações que aqui tentei apresentar são evidentemente passos iniciais, mas mesmo nessa altura sugerem que o estado xamânico, budista e yogue são diferente em termos de várias dimensões vivenciais importantes e são claramente discerníveis um dos outros.
Wagner Frota