O que caracteriza a medicina tradicional/natural que chamarei de medicina nativa é a natureza “espiritual” das estruturas de pensamento em que sua teoria e práticas se fundamentam.
A medicina nativa pressupõe uma antropologia distinta da medicina oficial, considera o efeito de enfermidade e de saúde de acordo com o quadro holístico que abarca e interpreta os fenômenos fisiológicos dentro do não-fisiológico, o natural dentro do não-natural. Para os nativos, não existe uma separação física de corpo e mente.
A medicina nativa reconhece uma ativa e imprescindível rede de inter-relações entre as desordens físicas e causas que poderiam definitivamente ditas como psicológicas. Atua-se com o rito sobre o mundo mítico (numinoso) e com a terapia sobre o paciente através de símbolos e ações carregadas de simbolismo, ou através da visualização de símbolos significativos, logrados por meio de substâncias psicotrópicas, para interpretar e explicar a enfermidade, a origem da mesma e sua possível cura através de uma perspectiva cultural. Neste caso, a medicina nativa utiliza-se do constante e imprescindível contato com as entidades do mundo mítico realizado por meio da ação ritual, a mesma que ao mesmo tempo controla o perigo do contato com o numinoso, e logrado pelo meio da visão. Qualquer um desses meios necessita da intervenção de um especialista cuja função, é ver entre os mundos, que tem um carisma especial, estamos falando do xamã, um mestre curandeiro que se diferencia do homem comum.
A medicina nativa não distingue entre eficácia cultural e farmacológica, entre a terapia ritualística e a por meio de remédios materiais e práticas fisiológicas. Para a cura das enfermidas “culturais”, remédios e práticas não servem fora de um contexto ritual apropriado. Em outras palavras, a medicina nativa considera igualmente ritos terapêuticos e farmacológicos dentro de um contexto sinergético. Neste contexto, as eficácias do rito e dos remédios atuam conjuntamente e inseparavelmente sobre uma unidade psicofísica cujos níveis do ser não são inseparáveis e devem ser alcançados conjuntamente com as práticas terapêuticas ao paciente.
Os níveis fisiológicos e culturais formam parte de um vasto campo de ação da medicina nativa. É por isso que um médico nativo ou curandeiro nunca é só um expert em ervas, um doutor que só prescreve remédios, ao mesmo tempo, o curandeiro é um psico-terapeuta e sacerdote do mundo mítico ancestral.
Por outro lado os remédios, minerais ou vegetais, constituem uma unidade complexa cuja existência abarca o material e o espiritual; o poder de uma planta medicinal, ou de uma psicotrópica, é uma manifestação de um espírito que dá vida à planta, o mineral, ou o lugar do qual foi recolhido.
O poder de uma planta medicinal depende de sua espécie botânica, como também de como se colhe a planta, pois existem ritos para fazê-lo, tais como as fases lunares que tem que se observar, se faz parte de um lugar sagrado, fora à pureza ritualística de que colhe.
O conceito de medicina nativa, portanto, abarca um campo que compreende práticas médicas e farmacêuticas para o que concerne ao aspecto fisiológico. Ao mesmo tempo inclui sistemas míticos, um conjunto de símbolos e execuções de práticas ritualísticas que trabalha o lado psicológico e propriamente o cultural dentro do qual temos que considerar particularmente o aspecto espiritual e religioso.
Na região norte do Peru, nos Andes setentrional, Mario Polia nos conta que: “Geralmente um Mestre escolhe um aprendiz para ensinar-lhe o ofício. Durante todo o aprendizado, o aprendiz vai aprendendo os passos necessários para tornar-se um xamã. No início ele apenas exerce a função de auxiliar, como separar o material ser usado no rituais e trabalhos, auxiliar no trabalho de limpeza e aprender a recolher as ervas. Porém não deve executar o trabalho de sucção de energia intrusas até o Mestre autorizá-lo, fato que demora alguns anos.
O aprendiz tem que aprender a interpretar o significado que aparece nas visões propiciadas no San Pedro, conhecer os encantados (seres e entes dos outros mundos) e os tipos de oferendas que tem que ser feitas para a natureza. Também tem que conhecer a fenomelogia dos ataques vindo por parte dos maleros. Ele deve aprender para que serve cada objeto da Mesa do Mestre, e aprender a entrar em contato com lugares sagrados.
Mas a coisa mais importante que ele precisa aprender é viajar entre os mundos e saber como agir e se defender nessas dimensões da realidade. Pois e geralmente lá que é realizada a cura do paciente que vem lhe pedir auxílio. Mas para tornar-se um xamã, o aprendiz terá que passar pelo ritual da morte através das mãos do seu Mestre que o levará até o mundo inferior, simbolizado pelo Corvo e pela cor negra, para que o jovem aprendiz possa comprovar a sua capacidade de controlar suas visões, esta experiência não é passiva, o aprendiz deve estar dormindo e ao mesmo tempo acordado para livrar-se dos perigos e viajar além do tempo e do espaço, ao mundo do mito.
Nessa fase se efetua uma transição de consciência, além das águas das correntes psíquicas, no mundo mítico e da cultura tradicional. Nessa fase o mito adquire um significado mais profundo de história real, uma história sagrada que se faz numa visão sagrada onde o que se vê e se vive, e não uma raiz com sua própria tradição.
A transmissão oficial de poder se realiza quando acabou o período de aprendizagem, ou quando o Mestre esteja bem velho para agüentar as fadigas extenuantes impostas pelo ofício. A maneira oficial de fazer a transmissão é a entrega da “Mesa” e a vara de Chonta ao aprendiz, que geralmente é feito numa lagoa onde o Mestre renuncia seu poder e lava todos os objetos antes de passá-lo ao aprendiz. Esse momento trata-se da ruptura ritual do pacto do Mestre com os Encantados, as entidades do mundo mítico andino. Após a despedida de todos, ele passa a Mesa e a Chonta ao Aprendiz, que deverá então fazer seu pacto com os Encantado nessa lagoa, ou em outra vista em alguma visão anterior.
No caso da morte do Mestre que não a passado seu poder para um aprendiz, a Chonta deve ser retirada imediatamente da casa do Mestre, para que forças destrutivas não ataquem a família do defunto. Um outro Mestre deve levar a Chonta com ele. Caso não aja um, a Chonta deve ser entregue na Laguna Negra, o Gran Huarinja, considerada a mãe de todos os lagos, uma fonte de inesgotável poder.
Ao entregar a Chonta na lagoa, devem ser feitas oferendas ao Espírito que vive na Chonta, as oferendas são doces, frutas, perfumes, aguardente e tabaco. Depois da cerimônia, envolve a Chonta e lãs coloridas, adornadas com flores e levada a lagoa. Ao chegar na lagoa, o outro Mestre que levou a Chonta, entrega aos espíritos do lugar às oferendas tradicionais, depois amarra uma pedra a Chonta, sepultando-a. Desta forma o ‘encanto’ que mora na Chonta, não encontrando outro sucessor humano, regressa a sua Mãe a lagoa sagrada de onde, conta os mitos foram conjuradas as forças do Sol e da Terra.
Depois é realizado uma cerimônia chamada “refresco” na casa do Mestre falecido, cuja finalidade é neutralizar o excesso de poder que satura a casa.”
Antes de finalizar, gostaria de abrir um parêntese e explicar o que são os maleros. Eles são os especialistas em fazerem o mal. Em todas as comunidades andinas, sabem-se que existe um malero, porém não se sabem onde vivem e quem é. Dentro da magia cotidiana andina, o malero expressa e maneja o lado escuro e mortífero do poder, seu principal ofício é produzir enfermidades e desgraças por meio de seus espíritos auxiliares. Estes, porém não são necessariamente entidades míticas negativas opostas ao encantados positivos que auxiliam o curandeiro, são os mesmos encantos utilizando suas potencialidades negativas. Pois o numinoso andino é positivo e negativo.
No Peru o termo Magista significa “quem usa a magia”, ou seja, aquele que trabalha com a interpretação negativa da magia e do mágico e não a contra-parte positiva da mesma.
Os curandeiros não trabalham com “magia”, e sim com a “virtude”, “poder”, “arte” e “ciência”, porém não é magia.
Aqueles que trabalham como maleros, também são chamados de bruxos ou “ganaderos” pois visam o lucro financeiro para si próprio, pois lucram com as enfermidades e as mortes. Entres seus “talentos” eles procuram, obscurecer o progresso das pessoas, enfeitiçando-as com ossos ralados, transformando-os em pó, escrevem o nome da vítima e colocam na boca de um defunto, usam crânios e outras “cosistas” mais, adoram trabalhar nos cemitérios e realizam ritos para capturar o corpo luminoso das pessoas transformando-as em verdadeiros vegetais. Chegam inclusive a matar.
Na eterna luta entre o bem e o mal, o curandeiro por seu lado, conhece e usa seu poder para contra-atacar e neutralizar a ações dos maleros. Nessa luta não esta descartada a possibilidade da destruição física do malero por parte dos espíritos auxiliares do curandeiro. Na ética andina o que distingue o curandeiro do malero não são exclusivamente os rituais que eles fazem, e sim a intenção. O curandeiro jamais ataca, somente o faz para se defender e defender seus pacientes, porém para realizar esses ataques ele se utiliza de espíritos auxiliares, rituais, objetos e até formulas idênticas as que são praticadas pelo seu inimigo. Inclusive, muitos curandeiros têm uma Mesa separada que chamam de Negra ou “Ganadera” que serve para esta finalidade.
Devemos nos lembrar que todas as armas que conhecemos podem ser usadas para defender e para matar. Inclusive uma das etapas mais delicadas que temos, é colocar o aprendiz de curandeiro de frente ao dilema do uso de seu poder: se irá usá-lo para curar, ou para matar, e se usar o último ter muito cuidado para não cair na sedução do lado obscuro.
A diferença crucial da intenção entre os dois, é que o malero não ataca para se defender e sim para ganhar dinheiro e pelo simples prazer de fazer o mal. Ataca sem ser provocado, para realizar os malvados desejos de seus clientes. O malero existe e tem a função de ser o catalisador da maldade, dos ódios, da raiva, das agressividades interpessoais e intergrupais.
A distinção entre curandeiros e maleros, é comum em todas as culturas, como também dentro do xamanismo em geral. Entre as culturas xamânicas dos Yakutes e outros povos da Sibéria, existe a distinção entre xamãs brancos e negros que se apoiam nas diferenças de seus espíritos auxiliares, respectivamente celestes e subterrâneos. Devemos sempre nos lembrar que o poder é ambivalente, tanto pode ser usado para a cura como também para matar, tudo depende de quem o invoca. Cabe a nós então, definir como iremos usar os nossos poderes.
Você consegue experimentar o poder e não se perder no processo? Essa é a pergunta que um Mestre Andino sempre pergunta ao seu aprendiz. Dizem que poucos completam sua jornada de iniciação… Muitos param ao longo do caminho e ficam em ser satisfeitos e ser curandeiros. Tornam-se donos de si mesmos. E há os que caem na armadilha do poder. Perdem-se ao longo do caminho.
Wagner Frota