O Estado Xamânico de Consciência Ampliada (EXCA) é a verdadeira essência do xamanismo; é fundamental na premissa de que o xamã é, tanto no passado como no presente, o mestre da imaginação como agente de cura. Os xamãs dizem ser capazes de entrar quando querem em um estado alternativo de consciência, que leva a capacidades especiais para resolver problemas. Os rituais xamânicos, tambores, cânticos monótonos, jejum e permanecer desperto, permitem ao xamã mergulhar em um estado semelhante ao do sonho, algo entre o sono e a vigília, em que são possíveis vívidas experiências mentais.
No EXCA usado na cura xamânica, empregam-se recursos mentais aos quais as pessoas hoje já não têm acesso ou não estão interessadas em usar, por causa da atual confiança no pensamento consciente, racional e coerente. No caso de problemas difíceis, em vez de voltar-se para a racionalidade, o xamã volta-se para as experiências internas para encontrar soluções, recorrendo às memórias sensoriais, bem como às abstrações e aos simbolismos. “Ele relembra o fluxo de suas imagens subconscientes sem usar os poderes críticos ativados pela consciência, como a rede de causalidade, tempo e espaço”. O xamã, com efeito, está se ligando a um banco de dados que não se pode ser conhecido na vigília, no estado normal de consciência. Uma descrição do Estado Xamânico de Consciência Ampliada que permita verificação externa, reprodutibilidade e seja confiável para os observadores é o mais confiável para esta geração acostumada à tecnologia científica, para compreender como a imaginação do xamã pode atuar sobre outra pessoa no diagnóstico e na cura.
Carlos Castaneda, em muitas histórias de sua iniciação por Don Juan, o xamã iaqui, faz uma distinção crítica entre os tipos de consciência. Ou seja, há uma realidade ordinária, o estado comum (ECC – estado comum de consciência, conforme Harner) e uma realidade não-ordinária (Estado Alternativo de Consciência – EAC). A viagem de cura xamânica acontece na realidade não-ordinária. Negligenciar essa distinção e não compreender tudo que as definições implicam levou a conclusões errôneas sobre a cura xamânica. A crença de que os xamãs lidam com casos psiquiátricos (usando assim a imaginação para curar apenas males imaginários) ou de que as capacidades do xamã se baseiam em truques e alucinações (isto é, os próprios xamãs seriam casos de psicopatologia) é uma falha do observador em compreender as ramificações dos diferentes estados de consciência.
Para o xamã há vários níveis da realidade e de alguma forma ele existe em todos eles, percebendo freqüentemente uma existência simultânea em um ou vários planos. O xamã poderá estar realizando sua jornada no estado xamânico de consciência, mas, ao mesmo tempo, poderá estar, perceptivo e até mesmo lúcido no estado ordinário de consciência. Os mundos do sonho ou da fantasia não são menos “reais” do que os mundos percebidos no estado de consciência ordinários, despertos, são apenas diferentes. O tesouro de informações de que o xamã dispõe é abordado e aplicado em um estado especial, ou “lugar”, que permite interações entre vivos e não-vivos, animais e, literalmente, entre todas as partículas do universo. Sobre isso, há uma concordância transcultural surpreendente, o suficiente para envergonhar nossas almas ocidentais por não ter tentado colher mais cedo informações dessa milenar escola médica.
Pessoas acostumadas a pensar em termos de mais de uma realidade, como os metafísicos, certos físicos quânticos e músicos, não têm problemas para compreender as implicações da consciência xamânicas. Quando os pensamentos são concebidos como coisas ou as coisas, como pensamentos (ou, mais precisamente, o inevitável, eterno intercâmbio entre massa e energia), então o sistema xamânico, tal como corporificação em um estado especial da existência, pode ser considerado algo mais que um amontoado exclusivo de comportamentos supersticiosos, charlatões desonestos e pacientes crédulos e desesperados (embora não se deva deixar de dizer que há fraude crassa em todos os sistemas de cura, inclusive no xamanismo).
As implicações da existência de uma realidade não-ordinária, mas real, devem ser examinadas primeiramente em termos de rituais e símbolos empregados nas cerimônias de cura. “Ritual” e “símbolo” são conceitos que as culturas ocidentais contemporâneas muito apreciam como atos metafóricos ou pretensamente. No estado xamânico de consciência, entretanto, eles se tornam, e na verdade são, aquilo que os xamãs dizem que representam. Quando um xamã veste a pele de seu animal de poder e dança em torno da fogueira, é o poder do animal dançando no estado xamânico de consciência, não o de um homem com uma pele em uma encenação teatral. Quando um xamã suga um objeto sangrento do peito de uma paciente enfermo ou aperta a barriga de outro paciente, dela retirando uma aranha e proclamando ter extraído a doença, o cientista ocidental tende a avaliar esse desempenho, similar ao de um mágico, em termos da realidade ordinária. A cura permitiu que o paciente ficasse fisicamente bem? Aquela “coisa” tirada do paciente estava medicamente relacionada com a doença?
Essas perguntas são irrelevantes para o conceito de saúde xamânica. Ficar bem pode ter pouco ou nada a ver com o corpo; e como não há algo como um símbolo, apenas a própria coisa, a moela de uma galinha ou a penugem manchada de sangue é exatamente aquilo que o xamã afirma que elas são, é isto que foi revelado durante o estado xamânico de consciência. Os símbolos são o modo de o xamã filtrar a viagem e apresentar uma informação de modo que a comunidade possa avaliar. Não há mentiras, mas um sistema para comunicar uma realidade pouco compreendida.
O estado xamânico de consciência corresponde, significativamente, à descrição de Lawrence LeShan, da “realidade clarividente”, por ele usado para descrever estados vivenciados por místicos e curadores mediúnicos. Ele contrapõe a realidade clarividente à realidade sensorial, em que a informação chega através dos sentidos, o tempo é descontínuo e segue apenas em uma direção, o espaço servindo como barreira para a troca de informações. A realidade clarividente por ele descrita é atemporal e nela pode haver objetos, mas apenas como parte de um todo unificado, e nem o tempo, nem o espaço podem impedir a troca de informações. Sua definição, portanto, se aproxima da idéia de uma realidade não-ordinária, conforme descrita por Castaneda, bem como do estado xamânico de consciência. As profundas pesquisas de campo de LeShan, realizadas como refinada visão científica, capacitaram-no a classificar os tipos de cura mediúnica, a reproduzi-las em ambientes controlados e, mais tarde, a desenvolver um quadro teórico para esses eventos. É assim que deve começar qualquer busca científica.
Embora eu não tenha mencionado especificamente o termo “psíquico”, a cura psíquica, tal como ele a descreve, tem a marca daquele tipo de cura por meio da imaginação que eu já inseri na categoria de cura transpessoal. Pode-se argumentar que os místicos e os curadores psíquicos também são xamãs, pois entram à vontade em estados alterados de consciência para ajudar outras pessoas, trabalham com espíritos-guia etc. No entanto, a definição do xamanismo significa que um papel social é preenchido, integralmente, e reconhecido pela comunidade. Os curadores psíquicos e os místicos, normalmente, não cabem nesta última qualificação. O certo é que aquilo que denominamos fenômenos mediúnicos constituem aspectos do xamanismo: clarividência, premonição, telepatia, mediunidade, métodos especiais de diagnóstico e capacidades de cura. Independentemente da terminologia, o território parece ser o mesmo. É neste espírito que o visionário Lois Claude de Saint-Martin, disse: “Todos os mistérios falam a mesma língua e têm origem no mesmo país”.
De acordo com LeShan alcança-se a realidade clarividente por meio de preces ou de técnicas que se acercam daquele a ser curado, que altera o estado de consciência. O curador não tenta fazer o que quer que seja para aquele que procura a cura; simplesmente tenta unir-se à pessoa, fundir-se e tornar-se um só com ela. Uma dedicação ou um amor intenso e profundo, dirigido àquele que vai ser curado, é o cerne do mecanismo de cura. O curador e o paciente, em um determinado momento, “sabem” qual é a parte integral que ocupam no universo, colocando o paciente em uma posição existencial diferente. “Ele (o paciente) estava de volta ao lar, no universo; já não estava mais separado dele… Estava completamente envolvido e incluído no cosmo, com seu ‘ser’, sua ‘unicidade’ e sua individualidade intensificadas”. LeShan notou que, nessas condições, algumas vezes ocorriam mudanças biológicas positivas.
A “realidade clarividente”, o estado xamânico de consciência, a experiência mística que traz do além o conhecimento e a percepção de fontes, só podem ocorrer se as barreiras que separam o eu do não-eu se tornarem fluídas e a imaginação for além do intelecto. Isso significa que as barreiras também são função da imaginação, e podem ser erguidas durante estados específicos de consciência. De acordo com os relatos daqueles que viajaram até essas outras realidade, como observamos em LeShan e outros, basta “estar” lá, com o expresso propósito de se curar, para que a cura aconteça realmente. Cabe lembrar que, no universo xamânico, saúde é harmonia. Ou seja, o curador só torna-se capaz de harmonizar ou “curar” o paciente reajustando sua relação com o resto do universo, quando reconhece a sua unidade divina.
Wagner Frota