Universo Xamânico

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A Trilha para se tornar um Xamã

As atividades de um xamã dependem muito intimamente da sua capacidade de dominar a audiência com o poder da execução, que deverá ter efeito não só nos assistentes como no próprio xamã. Os xamãs recorrem a muitos adereços e símbolos para representar a sua experiência psíquica e para influenciarem seus pacientes. Inúmeros xamãs se vestem de maneira especial, usando penas de pássaros poderosos, tambores, marakás e sinos, para criar efeitos musicais hipnóticos, bem como uma linguagem poética de encantos e rezas.

O xamã é escolhido pelos espíritos, e na experiência central da iniciação é morto e renascido por eles. A personalidade do xamã enriquece-se através da aquisição de espíritos auxiliares, que lhe dão a possibilidade de viajar através do Cosmo. Por outro lado, os espíritos hostis representam o lado negativo do paciente ou até da própria personalidade do xamã. A morte do xamã pode repetir-se ou ser representada em pequena escala cada vez que ele atua.

O xamã é um neurótico e um psicopata; o xamã é a pessoa mais sã da sociedade, profundamente sensível ao temperamento dos outros; o xamã é um exibicionista, um conspirador e um charlatão. Todas essas características controversas são freqüentemente atribuídas aos xamãs por aqueles que observam, e todas elas envolvem muitas presunções sobre a personalidade e a psicologia do xamã. Considerada a difícil natureza do apelo para se ser xamã, é provavelmente verdade que de fato seja necessário possuir uma personalidade distinta de todos, mas sua natureza poderá variar. As culturas siberianas exigem grande força emocional e física, e dizia-se que o homem que tivesse perdido os dentes já não podia ser xamã. Todavia, entre os Soras uma criança chorona e franzina pode ter a capacidade de ver espíritos e distinguir-se das restantes pela sua vocação.

Nos nativos americanos do norte, os poderes xamânicos estão largamente espalhados. Em certas partes da Amazônia, uma parte da população masculina é constituídas por xamãs, embora alguns possam ser mais poderosos do que os outros e a iniciação equivalha freqüentemente a uma fase essencial no desenvolvimento de uma personalidade de adulto. A busca de visão entre os Norte-Americanos funciona do mesmo modo, e a Dança do Sol combinava-se explicitamente com os ritos anuais da puberdade.

Os poderes especiais do xamã são inerentes a uma pessoa desde o nascimento, caso em que terão de ser trazidos à luz; ou então a pessoa possuirá uma predisposição ou o potencial para vir a ser xamã, e deverá adquirir o poder de qualquer modo. Os dois estados não são sempre claramente diferenciáveis.

Na Mongólia e na Sibéria, o elemento de herança é freqüentemente tornado explícito, e especial a linhagem masculina é importante. O xamã mongol tinha um direito ou qualidade hereditária, designada “udka”, que remontava até a origem celestial de sua linha. A “udka” Tengriin significava a descendência do deus do céu Tengri. A “udka” Ner’jeer significava a descendência de um antepassado que tinha sido atingido por um raio. A “udka” era também a marca do xamanismo como profissão: os ferreiros tinham uma “udka” própria comparável. Na Mongólia, assim como noutras regiões da Ásia com uma história de estados e de impérios, os direitos hereditários dos xamãs e dos governantes eram transmitidos de um modo semelhante.

O poder xamânico também se pode comprar, como em certas partes do Amazonas Superior. Todavia, a maioria das tradições salienta que são os espíritos que escolhem quem é que se vai tornar xamã. A seleção pelos espíritos é crucial. Mesmo com o princípio da hereditariedade, os parentes e descendentes de um xamã serão muito numerosos, e muitas vezes não é perfeitamente claro quem deva receber o dom. Os espíritos do xamã anterior podem vaguear fora de controle, como, por exemplo, entre os Evencos, da Sibéria, procurando novos “hospedeiros” e provocando doenças por todo o lado. Em muitas regiões, o futuro xamã poderá ser contatado em sonhos por espíritos que lhe surgiram que ele ou ela devam tomar seu cargo. Vulgarmente, a pessoa em causa fica seriamente doente, e acaba por perceber as intenções dos espíritos durante esta doença. Poderá ser uma doença como a varíola, que, sem o auxílio da medicina moderna, é geralmente fatal. Mas para os xamãs em perspectiva, a doença conduz uma aceitação do seu novo papel, que lhe permitirá ficar curado, e bem assim curar os outros.

Os Iacutos acreditam que um xamã só curava as doenças cujos espíritos tinham provado a carne do xamã durante sua iniciação. Em muitas regiões da Sibéria, as pessoas podem sofrer de uma “doença xamânica” perfeitamente distinta, em que pareçam ficar fora de si, lançando-se nuas pelos campos sem qualquer consideração pela própria segurança, ou passando semanas numa árvore, ou jazendo imóveis no chão. Durante este período, recusam-se a iniciar a difícil vida de um xamã e são perseguidos por espíritos que as obrigam a ceder. Quase sempre o iniciado cede, mas a luta pode ser dura e prolongar-se por alguns anos. Os espíritos ameaçam que, se o candidato mantiver a recusa, ele ou ela continuará a ser torturado por eles próprios, e acabará por ser morto eventualmente. Por conseguinte, o “dom” xamânico e o “controle” dos espíritos são como uma faca de dois gumes: em vez de serem ativamente procurados, são antes impostos contra a vontade do xamã, e além de conceder o poder também provocam angústia para toda a vida. Muitas outras culturas xamânicas encaram da mesma maneira o problema.

Qualquer que seja o modo como o xamã foi inicialmente escolhido, ele ou ela acabará por se adaptar a uma ordem totalmente diferente da vida de todos os dias. Tal como sucede no povo Wayapi, tanto os xamãs como certas árvores são “payé” – isto é, imbuídos de espírito xamânico -, de tal modo os Gaujiros, da Amazônia, dizem que uma pessoa que se torne xamã passa a ser “pulasu” – uma palavra que significa “espírito”.

Para um xamã em perspectiva, o contato inicial com os espíritos deve ser seguido de um período de instrução. A própria doença se torna uma forma de aprendizagem e compreensão, na medida em que o futuro xamã é apresentado aos espíritos auxiliares, a partir do que terá de atuar com decisão, prevenido sobre possíveis inimigos e tornado conhecedor da verdadeira natureza das doenças, e ataques externos a combater.

O primeiro contato com os espíritos toma a forma de um ataque violento, que conduz ao que parece ser a destruição da personalidade do futuro xamã. A isto se segue a reconstrução do xamã, cujos novos poderes não se limitam a um acrescento externo ou uma ferramenta. Na realidade, são uma espécie de visão íntima das coisas, uma perspectiva da natureza do mundo, e, em particular, das formas de sofrimento humanas que ele ou ela acaba de sofrer de modo tão intenso. A interiorização de todas estas experiências levará ao aparecimento de uma nova personalidade, e é esta que se exprime através da destruição da anterior natureza do xamã.

A experiência psíquica do candidato fica expressa pelo desmantelamento do corpo. Ele ou ela poderão ver-se como um esqueleto, um tema largamente encontrado na Ásia e nas Américas. Na Sibéria, cada osso e cada músculo é tomado à parte, contado e voltado a ser reunido com os restantes.

A iniciação não é necessariamente violenta. Na América do Norte, na busca da visão, o caso típico de um jovem dirigir-se a um local ermo para jejuar e orar durante alguns dias, a fim de adquirir um espírito guardião. Este espírito, que muitas das vezes é um animal, diz-lhe o que colocar na sua sacola de remédios (Medicine Bag), e ensina-lhe as canções de cura que lhe permitirão invocar o espírito e procurar proteção em momentos de perigo.

Na iniciação do xamã, o tema da morte completa-se com o renascimento, e o movimento do xamã no espaço cósmico é por vezes especificamente comparado ao regresso ao útero. Além de ser amamentado ao peito de uma mãe-espírito, o xamã siberiano é ainda ocasionalmente embalado num berço de ferro por espíritos, sobre os ramos da árvore do mundo. Entre os esquimós do Alasca, o túnel de passagem para o iglu significa claramente a passagem vaginal para o útero.

São estas imagens que permitem a alguns psicanalistas interpretar a iniciação xamânica como uma regressão infantil. É claro, contudo, que nem todos os retornos ao útero são regressivos, uma vez que o xamã re-emerge como um adulto integrado e excepcionalmente poderoso. Neste aspecto, a iniciação assemelha-se à iniciação efetuada em muitas sociedades por ocasião dos ritos de puberdade, da qual se diz que o adolescente regressou ao útero para renascer, desta vez completamente adulto ou, por outras palavras, como uma pessoa mais completa do que anteriormente… um xamã.

Wagner Frota