Universo Xamânico

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A Cura Tradicional

Sempre existiram técnicas de cura xamânicas paralelamente a uma medicina de natureza mais mecânica ou tecnológica. Um bom xamã, vendo que um paciente tinha uma flecha cravada entre as omoplatas, provavelmente não entraria em um estado alterado de consciência, pelo menos até que o objeto invasor fosse removido, todos os remédios disponíveis fossem usados para estancar o sangramento, e outros fossem empregados para impedir a infecção e a dor. O nível de capacidade para essas tarefas poderia ser considerável, mas em nada comparável ao que viria em seguida: a determinação dos fundamentos dos poderes do paciente e do inimigo, um exame dos motivos e sistemas de crença, e uma interpretação do trauma no contexto cultural. Tudo isso era trabalho do xamã.

Os xamãs, desempenhando as difíceis tarefas de procurar a conexão entre todas as coisas e proteger as almas dos doentes e dos moribundos, têm sido tradicionalmente procurados como um tratamento a que se recorre como último recurso. Para os problemas simples, a natureza proporcionou remédios óbvios, amplamente disseminado por todo planeta e muito conhecido pelas culturas mais antigas. As dores comuns da vida podiam ser aliviadas pela casca do salgueiro, o antecessor da atual aspirina; as dores da morte eram aliviadas pela essência da papoula. Até mesmo as cólicas e irregularidades menstruais podiam ser amenizadas por plantas que crescem em cada nicho fértil da terra. As infecções podiam ser detidas, as febres, diminuídas, e a loucura, refreada pelas oferendas da natureza.

As manipulações mecânicas dos conteúdos do corpo humano também não estavam acima da capacidade dos mais antigos representantes de nossa espécie. A cirurgia do cérebro foi realizada com sucesso, há pelo menos dez mil anos: há crânios desse período que mostram cuidadosa remoção e substituição de material ósseo, e indicam que o paciente sobreviveu, morrendo devido a outras causas. Ossos do paleolítico, mesolítico e neolítico sugerem que os humanos pré-históricos eram capazes de se manterem vivos por cerca de quarenta anos, e observaram-se vários ferimentos muitos bem curados. Há pelo menos dois mil anos orelhas e narizes foram substituídos mediante delicada cirurgia plástica.

A remoção de corpos agressores (balas, tumores, farpas e unhas encravadas) exige boa visão e mão firme, mas uma natureza filosófica é opcional. A medicina mecânica, assim como o assentamento de canos e a eletrônica, dependem do conhecimento cirúrgico, mas não, necessariamente, de avaliar como um vaso sanitário ou um rádio (ou um ser humano) se encaixam no cosmo. Fato típico das culturas xamânicas é que há uma hierarquia, em cuja base estão aqueles com um talento singular na manipulação física ou na prescrição, seguidos por especialistas em diagnósticos, e, no topo, estão os xamãs e o emprego que fazem da imaginação para intervir com o sobrenatural.

Nessa hierarquia, há uma quarta categoria de pessoas que também têm reputação de trabalhar com a imaginação de modo poderoso. Sua denominação algumas vezes é, impropriamente, traduzida por “bruxos”. Essas pessoas exploram o lado sombrio da magia e são chamadas quando a medicina do xamã falha, particularmente quando se acredita que a doença resulta de um feitiço. Desnecessário dizer que seu poder é muito temido e são reputados capazes de invocar as forças malignas da destruição e, certamente, se dispõem a isso. Os documentados da “morte vodu” e bruxaria, nas publicações médicas americanas, atestam sua capacidade para criar situações que têm um desfecho malévolo, por manipulação da imaginação.

O xamanismo é o método mais antigo difundido de cura pela imaginação. Há evidências arqueológicas que surgem que as técnicas do xamã têm pelo menos 20.000 anos, com evidências vividas de sua Antigüidade nas pinturas das cavernas no sul da França. Na caverna Les Trois Frères há uma representação de uma misteriosa criatura, semelhante a um cervo, em parte esculpido, em parte pintado, que julgam representar um xamã. Entalhes em osso de rena, da era paleolítica, mostrando um xamã com máscara de animal foram encontrados na caverna de Pin Hole, na Inglaterra. Outro entalhe, em osso de rena, de imenso interesse, mostra uma mulher grávida, deitada sob um cervo, presumivelmente com o propósito de reunir forças para suportar sua provação (o cervo tem um espírito curador conforme representações do início da história.). La Barre resume as evidências antropológicas que permitem datar o complexo xamânico na Ur-kultur do paleolítico e, em sua opinião, o xamanismo é a Ur-religião e a essência de todas as religiões sobrenaturais. (A Ur-keultur difundiu-se com os grupos humanos para todas as partes da terra, sendo ainda perceptível em algumas práticas culturais).

As práticas dos xamãs são notavelmente similares na Ásia, Austrália, África, Américas e até na Europa. Essa consistência leva a uma ampla especulação sobre contatos antigos entre os povos dessas terras. Michael Harner, entretanto, interroga sobre a razão de tais práticas persistirem por cerca de 20.000 anos, enquanto que outros aspectos dos vários sistemas sociais enceram grande contraste. Ele sugere que é porque o xamanismo funciona e, por erros e acertos, as mesmas técnicas de cura foram adotadas por diversas populações. Acredita também que não é preciso compartilhar as perspectivas culturais do xamã para que o xamanismo seja eficaz. “O procedimento antigo é poderoso e se enraíza com tamanha profundidade na mente humana que os habituais sistemas de crença de uma cultura e os pressupostos sobre realidade são essencialmente irrelevantes”. Em outras palavras, a crença nas leis imutáveis do universo invocadas na prática xamânica, não é mais necessária para fazê-las funcionar do que a crença na gravidade é necessária para fazer os objetos caírem. Nesse contexto da tradição xamânica, é concebível um meio natural que responde quando a invocamos pelos antigos procedimentos tradicionais que ela aprendeu a compreender. Enfim, estamos lidando com um universo condicionado classicamente. Essa posição de Harner sintoniza-se com a própria explicação do xamã sobre o funcionamento de seu sistema, e explica por que elementos comuns podem ser observado em todas as partes do mundo.

Wagner Frota