“Se o céu escurecer e a terra ficar toda alagada, eles (os brancos) não vão mais poder ficar empoleirados em seus prédios nem correr no peito do céu sentados em seus aviões. Se Omoari, o Ser do Tempo Seco se instalar de vez perto deles, eles só terão fios de águas para beber e assim vão morrer de sede”.
Davi Kopenawa (líder yanomani)
Napaykuna!
Em meio a pandemia da COVID-19, este retrovírus chegou a mais de cem povos indígenas de diferentes partes do Brasil, como mais de 30.000 mil casos e quase 1.000 mortes. O interessante é que pela primeira vez em cinco séculos, nós, os invasores de seus territórios, padecemos dos mesmos sintomas, o desespero e a fragilidade de uma doença desconhecida. Nesse sentido, “somos todos indígenas”, como disse recentemente o antropólogo Bruce Albert, pois sentimos na pele o sofrimento que impusemos a eles. O projeto de extermínio das culturas indígenas, proposto e executado pela equipe que rege o nosso País desde janeiro de 2019, volta-se agora igualmente contra nós, que vemos, com olhos arregalados, e trancados em nossas casas, as nossas vidas em risco, nas mãos de governantes incompetentes.
Infelizmente, além de terem seus territórios invadidos eles se encontram desprotegidos, sofrendo as consequências tanto do desmonte do sistema de saúde público, como também do projeto etnocida do Governo Federal. As vítimas preferencias, os anciões e anciãs, são os guardiões da memória ancestral desses povos. Para quem não sabe, essas mortes são equivalentes a incêndios em nossas bibliotecas, porém a diferença é que esses livros não podem ser repostos. Desta forma, o conhecimento ancestral está sendo perdido junto com essas vidas, o que é um grande golpe a essas culturas originárias.
Sabemos que essa não é a primeira epidemia entre os indígenas, e certamente não será a última. Como observador social, é interessante salientar que a COVID-19 está replicando a violência da ação predatória dos invasores. Caso o vírus não seja contido por meio de ações que controlem a entrada de não-indígenas nas aldeias, a tragédia terá uma dimensão inimaginável, pois as relações sociais indígenas são impensáveis sem a proximidade física, a partilha de comida e os cuidados diários. Os próprios atos de carinho, concebidos por eles como constituintes de pessoas saudáveis e plenamente humanas, tornaram-se, com o vírus, vetores da doença e da morte.
Grande parte dos povos indígenas acreditam que “a doença dos brancos” deve ser evitada, e para se manterem vivos eles têm que fugirem para longe dela, escondendo-se no interior da floresta. Desta forma, tornam-se inacessíveis às injeções de antibióticos que os próprios portadores das doenças tentam aplicar-lhes, causando assim o alastramento da epidemia.
Geralmente os povos indígenas cuidam de seus doentes, dando-lhe colo, massageando seu corpo, acariciando seus cabelos e falando com eles todo o tempo. Para eles, o doente só pode se curar por meio desse cuidado, associado a procedimentos xamânicos ou, atualmente, aos remédios alopáticos. Um doente abandonado, sem atenção, será mais rapidamente levado para o mundo dos mortos, pois, aborrecidos com os vivos por não cuidarem de seus parentes, os mortos chegam para buscá-lo.
Apesar de séculos de experiência com essas doenças exógenas e de ouvirem à exaustão conselhos de médicos e enfermeiros, eles não suportam, a ideia do “distanciamento social” como profilaxia. A medida é ineficaz por conta de seus princípios sócio-fisiológicos, pois, para eles, os corpos continuam se comunicando mesmo sem contato direto. Os parentes de um doente, mesmo vivendo longe, obedecem a uma série de restrições alimentares, pois aquilo que comem pode afetar o corpo da pessoa fragilizada.
Enquanto as bactérias e os protozoários entram nas células para fazerem-nas explodir de tão cheias, os vírus entram para enganá-las, para fingir que são parte delas, e então usar seu código genético para se reproduzir. São ladrões da identidade, tais como hackers, que usam a senha dos usuários e se passam por eles. Claude Lévi-Strauss diz que o vírus, embora não seja um ser vivo propriamente dito, pois não contém a sua própria forma de reprodução, tendo que se valer de seu hospedeiro, é mais evoluído do que formas superiores de vida, pois necessariamente posterior a elas. Nós somos os programadores, eles os hackers.
Para grande parte dos indígenas amazônicos, as doenças mais comuns são causadas por espíritos animais, que na verdade são seres humanos como eles, embora não possam ser vistos dessa forma, a não ser pelos xamãs, que têm um olhar especial. Esses espíritos estão sempre interessados em tornar os indígenas parte de sua própria comunidade, e para isso os agridem, flechando ou introduzindo em seus corpos parte de si, como garras, alimentos ou enfeites corporais. A doença é concebida como um processo de transformação em animal, que pode ser interrompida pelo xamã ou então levar à transformação definitiva, quando a vítima vai viver entre os animais. Não se morre, mas se vira outro.
A metáfora da colonização viral serve-nos assim para conceber o seu oposto: não são os vírus – lá os espíritos animais – que se transformam em pessoas ao roubar o seu código genético, a síntese mais pura de sua identidade, mas são as pessoas que se transformam em animais, que são simplesmente outro tipo de humanos. Os agentes da doença se oferecem como possibilidade de existência, inserindo partes de sua identidade – o seu DNA ou RNA, para continuarmos nas metáforas científicas – na vítima. Além disso, trata-se de uma relação ou disputa que, embora se passe no plano corporal, é essencialmente social. Os animais querem gente para si.
Estamos atônitos ao ver que, em meio a caos da pandemia, o projeto de destruição da Amazônia e seus povos autóctones se acelera, com convites à grilagem, mineração ilegal e invasões de todos os tipos, acompanhados do desmonte de órgãos de fiscalização ambientais e indigenistas, produzindo mais contaminação e doenças. O novo vírus, ao invés de obstáculo, tornou-se um trampolim para ações criminosas, inviabilizando-as em meio às notícias sobre a doença. Sabe-se que, sem a garantia de integridade de seus territórios, os indígenas não podem sobreviver, com ou sem vírus. O agravante agora é que, com as suas terras invadidas, não têm mais lugares seguros para fugir ao buscar proteção contra a doença, pois ela lhes é trazida diretamente pelos invasores.
Os que invadem as terras indígenas, assim como os vírus que continuam a trazer consigo, fazem-no para reproduzirem-se, usando os substratos locais: a água, a floresta, os minérios. Deixam um rastro de devastação e morte por onde passam. Como dizem alguns dos importantes porta-vozes indígenas da atualidade, como Raoni, Davi Kopenawa e Ailton Krenak, eles destroem o que na verdade é também seu corpo, como fazem os vírus. Cada vez que um corpo é destruído, ou mesmo antes disso, passa-se ao outro, como os portugueses e espanhóis, prosseguindo de um povo para o outro em busca de pau-brasil, borracha, ouro, prata ou mesmo de corpos a serem escravizados, o equivalente atual da busca por minérios e madeira. Em algum momento, sabemos, os recursos vão acabar, e a devastação será tão grande quanto aquela deixada pelo vírus em seu corpo hospedeiro. Como disse Davi Kopenawa: “Toda essa destruição não é nossa marca, é a pegada dos brancos, o rastro de vocês na terra”. Somos os vírus comendo o nosso próprio corpo.
Munay,
Wagner Frota