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Plantas Professoras

 

Toda cultura Ameríndia desenvolveu dentro de seu próprio sistema, metodologias psicofísicas que permitem acesso a um estado “alternativo” de consciência. Preferimos usar esse termo “alternativo” em lugar de “alterado” porque usando o segundo termo, deveríamos definir o estado dito “normal’ e consequentemente o conceito de “normalidade”, por contraposição, o conceito de “alteração”. O problema é que o conceito de normalidade, que engloba o de “realidade”, não é o mesmo para a cultura ocidental e para as culturas xamânicas.

Poderíamos falar de técnicas do êxtase, como faz Mircea Eliade, porém temos que diferenciar o êxtase religioso do xamânico. O primeiro comporta um distanciamento temporâneo da consciência sensorial, da personalidade e uma total passividade do extático mergulhado na experiência mística do êxtase. Já o estado de êxtase xamânico, pelo contrário, requer que superemos a consciência sensorial, sem que os sentido e personalidade do xamã se apaguem.

Por sua função de intermediário entre a matéria e o espírito, entre o mundo e encantos (espíritos ancestrais), realidade visível e sonho, o xamã não pode perder o contato com este mundo onde se encontram seus pacientes e consulentes que esperam respostas. O xamã deve viajar ou voar (expressões simbólicas equivalentes) entre os níveis do mundo que correspondem a dos estados de sua própria consciência.

O xamã não é possuído porque não participa passivamente da experiência visionária, a sua não é a união mística de contemplante, apesar de poder agir assim se quiser. Sua visão é funcional, não é objeto de suas práticas ascéticas: é funcional ao diagnóstico, a terapia, a resposta oracular, a propiciação de energias numinosas positivas ou a neutralização das negativas.

Entre as várias técnicas para alcançar o estado alternativo de consciência, tais como são a música, a dança, a abstinência e jejum, a respiração, etc., algumas tradições utilizam a ingestão de substâncias psicotrópicas. A palavra que deriva do grego e quer dizer “que faz deslocar a consciência”. Prefiro utilizar o termo “psicotrópico” no lugar de “alucinógeno”, pois alucinação é por definição algo que carece de realidade objetiva enquanto que a visão xamânica se reveste de formas simbólicas, se faz visível e tangível, mostra a sua realidade.

Examinar o uso de todas as substâncias psicotrópicas pelas culturas ameríndias requer um estado largo e detalhado, por isso aconselhamos o leitor a ler “Alucinógenos e cultura” do Furst. Mencionaremos aqui apenas o tabaco (Nicotina tabacum) cujo uso se difundiu por todas as Américas, chamado picietl pelos Astecas e sayry pelas culturas dos Andes; as Daturas (Datura inoxia, D. stramonium, D. meteloides, etc.), o chamico das antigas culturas peruanas, toloaltizin dos Astecas, toe dos amazônicos; as Brugmisias (Brugmisia suaveolens, B. candida, B. sanguinea, etc.), conhecida no antigo Peru pelo nome de huanto (wantuq), ou mishas no moderno curandeirismo; a willka (Anadenathera peregrina, A. colubrina) das culturas andinas; a ayahuasca (Banisteriopsis caapi, B. inebrians, B. muricata, etc.) da selva amazônica; o peyote, o ikuri (Lophophora williamsii), das culturas mexicanas e dos Apaches, Kiowas, Winnebago e Deleware dos Estados Unidos; o wachuma (Trichocereus pachanoi) dos Andes; a Rivea corymbosa, ou ololiuhqui dos Astecas; os cogumelos dos gêneros Stropharia ou Psilocybe, chamados no México de teonanacatl, ou seja “carne dos deuses”; secreções de certos sapos (Bufo marinus, etc.) e outras espécies do reino animal e vegetal que ainda não foram estudadas.

É interessante notar que cada espécie vegetal correspondente na cultura de origem tem um duplo espiritual que se manifesta no transcurso da visão em formas conhecidas e interpretáveis dentro da tradição cultural daquela cultura. O xamã “conversa” com as entidades míticas e estas o instruem: revela os cantos que curam; lugares míticos e secretos; como acontecimentos distantes no tempo e espaço, o poder de determinados lugares e de plantas; o coração e intenções das pessoas. Por esta razão as plantas psicotrópicas dos Andes e da Selva Amazônica são chamadas de Plantas Professoras.

O uso ritualístico das plantas sagradas, a visão por parte não só do xamã como de seus auxiliares, consulentes e pacientes, e o prestígio mítico das mesmas nos permite defini-las como “drogas sacramentais”. No que se refere ao seu emprego nas comunidades andinas tradicionais, elas são utilizados com o maior respeito e não “recracionalmente” como ocorre em muitas cidades pelo mundo a fora.

As mais variadas culturas xamânicas do mundo comparam a experiência visionária com o sonho usando uma palavra que define a alteridade da experiência, porém não a irrealidade pois trata-se de experiências espirituais que as culturas indígenas consideram plenamente reais. Os gregos a chamavam óneiros (sonho); os astecas xóchitl (sonho florido); os aborígenes da Austrália chama o tempo do mito altcheringa (tempo do sonho).

Falando de visão, nos referimos a percepção em um estado alternativo e consciência do mundo mítico característico da cultura a que o xamã pertence. Ao mesmo tempo, as culturas indígenas que usam substâncias psicotrópicas distinguem claramente entre a “visão”, o “sonho” do xamã e a simples percepção de fosfenos produzidos pelos princípios ativos das “drogas” e também das meras experiências oníricas. Saliento que o termo “droga” para nós, é tudo aquilo que muda a química natural de nosso corpo humano.

A capacidade visionária distingue o xamã do herbalista e estabelece a diferença entre operador carismático, o xamã, e o não carismático, o raizeiro. Este último prescreve as ervas de acordo com o quadro clínico do paciente e de acordo aos ensinos empíricos da fitoterapia tradicional, enquanto o xamã “ve” os espíritos das plantas, por exemplo um “inka” que mostra entre as muitas que crescem em um jardim encantado a planta que deverá ser utilizada para curar aquele paciente. Ou em sonhos, se mostra o espírito da planta. Não importa estabelecer se a experiência empírica do xamã, seu conhecimento das plantas, influa na substância da visão e quanto, o que importa notar é que o paciente exige este tipo de resposta e confere a terapia sua “eficácia relativa”, e saber psíquica, cultural.

Se em uma comunidade tradicional falta-se a figura do xamã, o mundo ficaria vazio de significado porque faltariam os meios de estabelecer o contato com sua “alma”. Aconteceria um terremoto cultural tão violento que as coisas explicáveis pela tradição – a vida, a morte, a enfermidade, a relação com o mundo espiritual, relações sociais – se tornariam inexplicáveis. Ficaria obscurecida não só a compreensão do Universo, mas da própria vida e do sentido da presença da pessoa no mundo.

Expomos abaixo algumas funções das Plantas Professoras ou “Maestras”:

  1. Permitir o diagnóstico: a origem de muitas enfermidades é sobrenatural, especialmente das “síndromes culturais” assim que o terapeuta deve antes de tudo estabelecer quais entidades do mundo mítico são responsáveis pelo “contágio” da enfermidade e se sua intervenção foi causada por culpa, descuido da pessoa, ou se foi “enviada” por “maleros”.
  2. Estabelecer a terapia, tais como: permitir qual oferenda deverá ser feita para restabelecer a saúde de um paciente, para que ele tenha de volta a sua “sombra” em caso de “susto”, para “recompensar” a entidade responsável pelo seu rapto. A visão, ou a conversa com aliados espirituais do xamã, os “compactos”, permitem estabelecer quais práticas terapêuticas, remédios podem curar o enfermo. Em síntese uma vez que a grande maioria das enfermidades e desgraças tem origem sobrenatural é considerado insuficiente formular um diagnóstico baseado só no quadro das alterações fisiológicas. Em outras palavras as síndromes culturais requerem, para sua cura, a aplicação conjunta da eficácia absoluta e a relativa, dos remédios e práticas ritualísticas.
  3. Propiciar o transcender as dimensões espaço-tempo para acessar o tempo mítico. O xamã nunca é simplesmente um terapeuta, é um oráculo ao mesmo tempo. Neste sentido, as Plantas Professoras permite o “voo” do xamã em busca de pessoas, lugares, objetos, acontecimentos desconhecidos além do espaço-tempo, entrando como dizem nos Andes no Taripay-Pacha, o espaço além do tempo.
  4. Facilitar o contato com as entidades míticas com fins propiciatórios para a fortuna, amor, etc.
  5. Em certas culturas, principalmente as amazônicas, as Plantas Mestras revela ao xamã os cantos (ícaros) que tem o poder de defendê-lo e aos seus pacientes, como também o despertar do poder das plantas propiciando a presença de espíritos amigos e até modificar o conteúdo de uma visão.
  6. Em alguns casos excepcionais as Plantas “Maestras” revelam ao indivíduo a futura vocação xamânica.

Todas estas funções são peculiares em todas as tradições xamânicas que fazem uso das Plantas.

No que diz respeito ao papel real das Plantas Professoras como função psicoterapêutica notamos que esta:

  1. Permitem ao paciente visualizar e reviver os acontecimentos que realmente produziram sua enfermidade ou desgraça.
  2. Reforçam e legitimam a autoridade do xamã enquanto interpreta os símbolos e o conteúdo das visões e, por conseguinte, reforça a fé no sistema médico tradicional, condição indispensável para que o paciente alcance a sua cura.
  3. Confirma a fé no mundo mítico tradicional, pois os “encantos” (espíritos ancestrais) se fazem visíveis e reforçam a consciência de pertencer à cultura tradicional da comunidade.

Wagner Frota