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Wachuma

Em meus estudos sobre as tradições xamânicas andinas, encontrei diversas Plantas Mestras, mas a Wachuma (Huachuma) me chamou mais atenção. O uso do cactos Trichocereus Pachanoi, popularmente conhecido com San Pedro, no panorama americano do uso de plantas psicotrópicas está ligada a área do mescalinismo. O uso deste cacto tem fins terapéuticos e adivinhatórios e deve ser estudado no contexto geral dentro dos rituais xamânicos. Deste modo poderemos estabelecer significativas comparações, no que concerne as funções das substâncias psicoativas com os mitos e ritos com elas relacionadas, com outras áreas culturais, como a mexicana, mas conhecida e estudada, que tem outra espécie de cactos mescalino, o Peyote.

No que se refere aos nomes populares do San Pedro, podemos estabelecer uma relação mítica cultural com a função do homônimo “santo” que têm as chaves do céu dentro do credo Cristão. Também nos mitos de origem do uso do San Pedro, planta e “santo” existe uma relação simbólica e funcional muito estreita. No norte andino, o nome San Pedro se alterna Wachuma/guachuma, que parece haver sido o nome antigo, e outros nomes como erva santa, cardo santo, huando hermoso e remédio porque o cacto é usado pelos xamãs para determinar em suas visões ou sonhos, como devem proceder num processo de cura. No que se refere ao nome huanto, é evidente a derivação do quechua wantuq que significa “elevado”, em relação a altura alcançada do cactos, tendo uma relação significativa com o simbolismo do vôo do xamã.

O uso popular da planta fez com que descobrissem duas espécies distintas do cactos: Trichocereus Pachanoi e o Trichocereus Peruvianus, sendo esse último com mais espinhos, geralmente agrupado em número de três, uma maior e outras de tamanhos iguais. O Trichocereus Pachanoi é o autêntico, que é distinguido pela quase ausência de espinhos. As espinhosas recebem o nome de San Pedro Cimarron e têm a cor verde-amarela e não verde como o Trichocereus Pachanoi. Os xamãs jovens que não foram instruídos por mestres mais velhos, usam indistintamente as duas espécies, enquanto os mais velhos só usam o legítimo. O cimarron é usado geralmente pelos maleros (bruxos negros) e essa planta não tem o poder da visão.

O uso de plantas psicotrópicas no xamanismo e nas práticas religiosas ameríndias, se explica conhecendo a fundo a estrutura do pensamento religioso dessas culturas e seu ícones. Estes consideram o campo da “realidade” e do “real” mais amplo que os limites da consciência sensorial. Por conseguinte, estende o conceito “conhecer” os estados de consciência distinta da percepção sensorial. Chamaremos a estes estados de “alternativos”, termo que prefiro que “alterados” pois esta Segunda definição implica que se defina previamente um conceito de “normalidade” que dificilmente escaparia ao nosso etnocentrismo.

As culturas que empregam as “drogas” sacramentais as usam porque negam a realidade material o direito de ser a única forma de realidade, o conhecimento sensorial e “racional” o direito de ser a única forma de conhecer o mundo. No pensamento “religioso” ameríndio o microcosmo humano tem uma profunda relação em todos os níveis do ser (o físico, emocional, mental e espiritual) com seus correspondentes níveis macro-cósmicos. Na visão ameríndia do mundo, não existem objetos inanimados: o conceito de “anima”, “espírito” não é exclusivo do ser humano, também abarca animais e plantas, lagoa, fontes e rios, pedras e montanhas. Entre as plantas, aquelas de poder psicotrópico são receptáculos, o “corpo” de um “espírito” que abre as portas da visão, auxilia e inspira os xamãs como um verdadeiro “mestre”. Este é o conceito de Plantas Mestras. Em muitas regiões andinas o San Pedro é chamado de “mestre dos mestres”. Graças a está consideração mítico-religiosa de que gozam as plantas psicotrópicas o uso das mesmas é regulado por estruturas ritualísticas e seu uso é limitado dentro do campo religioso.

Se quisermos uma definição sintética da função do xamã nas culturas mundiais, devemos dizer que este é a ponte entre o aspecto visível e a contraparte invisível da realidade, ou seja, entre “corpo” e “alma” de todas as coisas. Entre o microcosmo e o macrocosmo, entre o humano e o sagrado. Os Inkas definiam os xamãs como punku que literalmente significa “porta” ou “entrada”. O xamã atua como um link entre o “corpo” e a “alma” de seus pacientes e entre “corpo” e “alma” de sua tradição, ou seja, os mitos e verdades aprendidas pela fé e pelas vivências dentro de sua tradição.

No que concerne a função terapêutica do San Pedro e de outras Plantas Mestras, é necessário realizar sessões com os pacientes, tendo como conceito de cura a necessidade de que para curar o corpo, é necessário curar a alma. As Plantas Mestras ajudam a visualizar, em uma formulação simbólica e mítica dentro da “visão” que ela nos propiciam, mostrando-nos as causas psíquicas que há contribuído para que a enfermidade se desencadeasse; permitem sobrepor a enfermidade reafirmando, a “visão”, a autoridade do terapeuta e do sistema mítico-médico tradicional de cura andina.

O poder terapêutico de uma planta, nas tradições xamânicas andinas, manifesta a qualidade peculiar da planta, seu “poder” ou “virtude”, e este poder, que é o caso das plantas psicotrópicas e de certas plantas que gozam de especial prestígio mágico e terapêutico, manifesta a presença de um espírito. Por isso, dentro dessa tradição, “poder”, “virtude” e “espírito” são sinônimos.

O poder de uma planta deriva da espécie a que ela pertence, sem dúvida, o poder terapêutico é o resultado também de outros fatores como são a qualidade física do lugar onde a planta cresce, o momento da coleta observando as fases lunares, o turno do dia e certos dias na semana como Terça ou Sexta respeitando os rituais de coleta, preparação e administração de certas plantas e de modo particular as psicotrópicas. Devemos ter muita atenção no poder dos cantos e fórmulas que servem para despertar o poder da planta.

Todas as plantas, sem exceção têm um espírito vital, porém só algumas delas possuem um “espírito” que outorga a visão, como é o caso do San Pedro, e possuem também um espírito curandeiro.

O espírito curandeiro elimina a energia negativa que produz a enfermidade. Muitas plantas como a Chonta (uma árvore) por ter um espírito muito forte, são trabalhados em formas de espadas e varas que são usadas para defender o xamã e seus pacientes de ataques dos maleros.

O espírito da planta sente, portanto sua maneira de atuar depende da atitude que temos para com ela. Uma atitude ritualística, sincera e correta resultará num trabalho positivo e uma atitude descuidada e irresponsável, produz uma reação negativa: um castigo. O tipo e valor das oferendas ao colher uma planta é muito importante, pois a planta pode trabalhar contra que pede seus favores, se o inimigo tenha sabido comprar seus favores com melhores “pagos” (oferendas).

O poder por si, nunca é exclusivamente bom ou mal. É bivalente, bom e mal, pois todas as plantas têm espíritos curandeiros e maleros. O que determina que as plantas atuem positivamente (curando, defendendo e dando a visão) ou negativamente (contagiando, atacando e “obscurecendo”) depende do intento do praticante e da finalidade do rito realizado por ele. Dentro desta perspectiva, é muito significativa algumas atitudes ritualísticas de xamãs que apresentam oferendas aos instrumentos de seus inimigos (aos espíritos que os anima) para neutralizar seu poder. Vemos este procedimento tem a mesma estrutura do rito romano de exauguratio cuyo que objetivava pedir favores aos deuses do inimigo.

Por meio dos rituais de beberagem se abrem as portas da visão, os espíritos das plantas se manifestam assumindo as formas das plantas em sua plenitude. O espírito das plantas psicotrópicas, como o San Pedro, Mishas e Ayahuaska, podem assumir formas zoomorfas ou antropomorfas, e falar com o xamã como uma voz que o instrui.

Segundo os xamãs peruanos, o San Pedro tem uma entidade mítica (espírito, poder ou virtude) que permite a visão e instrui o xamã durante a visão. As formas de suas manifestações espirituais dependem da cultura de quem a experimenta. Frequentemente são manifestações antropomórficas e também animais, entre estas últimas à presença de felinos é mais comum.

A manifestação do espírito funciona como mola propulsora para o êxito das cerimônias terapêuticas e/ou adivinhatórias e permite o xamã conhecer a origem sobrenatural das doenças, das desgraças e conhecer o responsável pela ação material ou mágica que fez o dano ao paciente, permitindo ainda ver as plantas que irão curar o enfermo. O poder do San Pedro permite o xamã liberar seu corpo luminoso, sua contra parte espiritual. Com seu corpo luminoso o xamã realiza sua viagem as regiões do mito para buscar as pessoas, coisas perdidas ou escondidas e também visualizar futuros acontecimentos, pois a saída “deste mundo” representa também a saída “deste tempo” segundo o conceito da palavra pacha em quechua, que para mim significa “outras dimensões da realidade”.

O espírito do San Pedro age como um espírito auxiliar do xamã, sendo o mais poderoso e importante dos espíritos auxiliares, pois sem o dom da visão o xamã não é reconhecido como tal e não pode atuar.

Por meio do San Pedro o xamã passa por uma “puerta” que geralmente é guardada por Puma, entre o mundo visível e invisível. Obtêm o contato com as almas das coisas, dos seres, e lugares para exercer controle sobre eles. O San Pedro permite a entrada no mundo dos “encantados”, ou seja, das entidades míticas do universo andino. Ainda por meio da “virtude” do San Pedro o xamã ultrapassa os limites das dimensões espaço-tempo relacionado com o estado de consciência sensorial e adquire capacidades advinhatórias.

A ingestão de San Pedro, como de outras Plantas Mestras, tem um valor “sacramental” pois permite a união com a entidade espiritual que se manifesta através da planta.

Existe uma série de ações e ritos para colher, preparar e ingerir o San Pedro:

O San Pedro nunca é colhido como uma planta qualquer porque seu espírito tem que ter uma relação ritualística correta para que seu poder não malogre quem a colher e conceda uma visão limpa e verídica ao xamã e seus pacientes. Geralmente elas são recolhidas depois das 3 da tarde durante o plenilúnio, mas isso não é obrigatório, a intuição do xamã é que conta na maioria das vezes.

Eles são plantados em lugares áridos e secos, os que crescem perto de lugares sagrados e cemitérios são mais fortes.

Quem recolhe o San Pedro observa o jejum de sexo na noite anterior. Existe também uma pureza em relação aos instrumentos que serão utilizados para auxiliar na coleta, eles devem ser limpos de qualquer contato com alimento proibidos. A faca não deve ter cortado carne, nem tocado sangue, nem haver cortado cebola ou alho, pois provocaria a perca do poder da planta.

Oferece-se especialmente mel, suco de lima, açúcar branco, farinha de milho branco, perfume de sementes da selva. Às vezes oferece-se álcool. No momento da oferenda e corte do San Pedro, se faz alguma invocação dirigida ao poder da planta para que siga o mestre, para que conceda uma visão limpa, sem perigo e para afastar qualquer negatividade.

Na preparação do chá, durante o corte do cacto em rodas, tem que utilizar a faca nos mesmo requisito solicitada para a coleta. O cozimento deve ser feito a tarde ou nas primeiras horas da noite, e deve ser utilizada panela nova ou que nunca tenha sido usada para cozinhar alimentos proibidos (alho, sal e carne). Não deve deixar água cair sobre o fogo durante o cozimento, pois provocaria o corte do efeito visionário.

Existe certos cantos ritualísticos que devem ser cantados durante o cozimento. Outro fato importante, é que a pessoa que corta e prepara a planta deve ser a mesma que distribui aos participantes durante a cerimônia. É imprescindível que essa pessoa esteja purificada e tenha mantido jejum sexual, pois senão aparecerá uma visão erótica durante as visões. Se uma mulher menstruada corta e prepara o chá, na visão se verá sangue.

Existe um período certo de cozimento que é guardado a sete chaves pelos xamãs mais velhos. Porém a maioria são cozidas em panelas de barros por mais de duas horas, podendo chegar até cinco horas de cozimento.

No momento da distribuição do chá, segue-se o sentido anti-horário e todos bebem na mesma taça. Os participantes fazem um semicírculo em volta da Mesa de objetos sagrados do Xamã. Todos os participantes devem ter obedecido ao jejum sexual e alimentar da coleta e do cozimento. Antes começar a tomar, o xamã recita uma invocação e bebe primeiro. A estrutura da invocação se pede ao espírito uma visão limpa e clara, e se pede que anulem as ações dos inimigos invisíveis e ventos maus.

Uma das atribuições do San Pedro como também das mishas, é proteger a casa e as pessoas contra ataques inimigos. Por esta razão se invoca ao espírito, proteção a família, aos amigos, mencionando seus nomes. Às vezes se enterra embaixo da planta um papel com o nome de todos os familiares. O San Pedro avisa em sonho aos seus protegidos, com um silvo muito agudo de que alguém quer lhe fazer algum mal. Nós falamos em silvo das plantas, pois para os Yaguas e outros povos amazônicos, cada planta e seu espírito tem um registro musical específico que é evocado nos cantos executados pelos xamãs, os mesmos que se entonam com o canto do espírito da planta.

O San Pedro chega a altura de 3 a 6 metros de altura e com um diâmetro de 10 cm, com vária ramificações desde sua base, com 4 a 7 ribs (nervuras), grosso e redondo, com espinhos de 1 a 4, muito pequenas o de todo ausentes, de cor amarela. Sua flor de forma cônica truncada, com o diâmetro de 25 o cm, e existem diversas cores, porém as brancas, amarelas e roxas são as mais comuns. As flores que são perfumadas se abrem às 7 horas das noite e permanecem abertas até as 10 da manhã seguinte.

O Trichocereus Pachanoi é uma planta rica em mescalina o TMPE (trimetoxipheniletilamina) em quantidade de 2% do cactos seco o de 0,12% da planta fresca. A mescalina é um alcalóide encontrado outras 10 espécies de Trichocereus e no cacto mexicano, muito mais conhecido, Lophophora Williamsii, o Peyote, usado atualmente pelos Huicholes e outros nativos do México, como também em cerimônia da Igreja Nativa Americana. Além da mescalina, no Trichocereus Pachanoi se encontra tiramina, metiltiramina, metoxitiramina, ordenina, analonidina e tricocerene. Todos são alcalóides, e foram experimentados pelo homem. Ministrado em dose mínima não produz nada na percepção sensitiva, mas induz a um efeito sedante e em dose mais elevadas pode levar a um sono profundo e alguns distúrbios neurológicos.

Os ditos alcalóides podem juntar ao efeito narcótico que se faz presente na ingestão do San Pedro, é que ao meu ver é de uma importância relevante. Mas a atenção dos estudiosos concentrou-se principalmente na mescalina que é o alcalóide responsável pelos efeitos alucinógenos.

A experiência com o cacto, como com a mescalina, é dividida em fases: primeiro há uma fase caracterizada por efeitos físicos e mentais. Os sintomas físicos são náuseas, vômitos, vertigem, transpirações, taquicardia, sensação de frio ou de calor, e tremores. Há um aumento da pressão arterial e uma taquicardia, que pode atribuir-se ao temor e a ansiedade deste tipo de experiência.

A fase psíquica é dividida em dois: um período preliminar caracterizado pela predominância de fenômenos eufóricos e empáticos, e por uma profunda experiência psíquica no qual seu transcurso pode produzir visões, entendendo-as como uma síntese entre a distorção da percepção associada com uma atitude contemplativa. A culminação da experiência com o San Pedro coincide então com a experiência visual das “alucinações”.

Existem dois tipos de efeitos visionários. Um primeiro que predomina em ver espirais, túneis, tubos e aureolas ao redor dos objetos. Um segundo tipo, caracteriza-se por imagens mais complexas e estruturadas em seqüências cronológicas significativas com uma predominância da imaginação sobre a percepção ordinária da realidade; em uma palavra, alucinações. A aparência do mundo exterior se altera, para mim o mundo é o mesmo, porém estamos em outra dimensão da realidade onde foram alterados as coordenadas espaços temporal e adquire uma característica típica de revelação mística. Para os xamãs e curandeiros o San Pedro é um “Mestre” que tem o dom de transportar o “buscador” a outro mundo para outorga-lhe conhecimentos e os poderes da força da natureza.

Wagner Frota