Os Shuar/Jívaros como todos grupos indígenas que conheço, encontram em sua mitologia explicações para todos os fenômenos naturais, sociais, religiosos, políticos e artísticos que ocorrem no seu dia a dia. Baseado nesta mitologia, eles estabeleceram uma relação de equilíbrio com a Natureza.
Seu universo é organizado de acordo com suas necessidades. Eles são conscientes dos perigos da selva, porém eles sabem viver em completa harmonia com a Natureza, como verdadeiros irmãos.
Pude constatar essa relação ao passar por um rito de iniciação num Shabono Shuar na selva amazônica, na fronteira Equador/Peru. No rito em questão, eu participei de uma cerimônia de natem (ayawaska), onde após tomar um preparado de folhas de tabaco maceradas em água na intenção de me purificar para enfrentar as provas que eu teria que passar nos dias seguintes para me tornar um membro da Sociedade Charrúa. Assim que bebi o natem, o tuntui (tambor) passou a tocar fortemente, de forma débil e pausadamente, visando chamar Ayumpum, um ser da mitologia Shuar que controla a vida e a morte.
Passado mais ou menos uns vinte minutos, o Uwishin (Pajé) me fez inalar um suco de tabaco pelo nariz, enquanto agitava ritmicamente shishink (chocalho de folhas de mandioca e guayaba) na intenção de chamar os espíritos auxiliares para que se abra os caminhos para que o Pajé possa realizar o trabalho de purificação. Enquanto escutava o som do shishink, a cada minuto eu sentia mais frio, mesmo sentindo queimar as minhas entranhas. Fumaça de tabaco era jogada no meu rosto, nutrindo os espíritos auxiliares e auxiliando o Uwishin a identificar as enfermidades no meu corpo, em forma de dardos. Localizado as partes afetadas, o Uwishin começou uma seção de sucção, cuspindo fora aqueles dardos que não me pertenciam.
Aos poucos fui me sentindo cada vez mais leve, entrando numa espécie de sedação que me levou a sonhar com uma canoa que navegava calmamente por uma lagoa transparente. Passado o efeito da sedação, comecei a ter ânsia de vômito e após vomitar durante alguns minutos, fui levado a uma cachoeira onde fui banhado e depois levaram-me para uma pequena cabana isolada próxima ao Shabono, onde eu iria passar os próximos dias.
Quando acordei na manhã seguinte, vi inúmeras Tsantza (cabeças encolhidas) penduradas pela cabana. Nos dias que passei com os Shuars, fiquei sabendo que aquelas cabeças eram de inimigos. Assim que matavam seus inimigos, os Shuars arrancavam a cabeça e a escondiam no bosque por oito dias, até as mesma estarem prontas para serem preparadas para se tornarem um Tsantza. Geralmente eles põem a cabeça em água fervente, depois a secam em cima de cinzas quentes. Depois eles a cozinham dentro de um jarro funerário, completamente fechado, sacudindo-o de vez em quando. Depois eles pintam a cara com carvão e a moldam até que assuma traços naturais.
Durante este processo, o Shuar chama Ayumpum para que ele volte a vida, quando morrer. Quando a Tsanta fica pronta, a comunidade prepara uma grande festa regada a chicha de yuca (cerveja de mandioca). Enquanto as mulheres ficam dentro das cabanas cantando, para atrair boa sorte ao guerreiro e protege-lo do mal, para que toda a matança seja esquecida, para que a terra da vítima seja abandonada e as cinzas apaguem todo caminho ao seu redor.
Um dos anciões sopra fumo de tabaco no nariz do guerreiro, para que ele não sonhe com a morte, pois seria mal agouro. Depois o guerreiro entra no rio e o ancião corta uma mecha de seu cabelo e joga no rio para a corrente levar para longe. Depois disso, o guerreiro põem uma nova roupa e deixa o passado para trás e se transforma numa nova criatura.
Como pude perceber, a preparação da Tsantza é um rito religioso pelo qual os participantes jogam para longe todo mal, que a alma perdida da vítima seja recuperada e que nasça de novo numa mulher da tribo. Desta maneira a justiça se estabelece mais uma vez, e a comunidade pode viver em paz e alegria. A celebração acaba num grande baile, onde todos cantam, bebem e comem até não agüentar mais.
Perto do anoitecer, o Uwishin entrou na cabana aonde eu estava e me fez tomar um suco de Maykua (Brugmansia, conhecido também como Floripôndio ou Dama da Noite) macerada em água. Acabando de beber o suco, tive os meus olhos vendados e fui suspenso por cordas que encontravam-se no alto da cabana. Eu senti os meus músculos sendo esticados ao extremo. Num determinado momento quando dei por mim, eu me sentia como uma estrela amarrada numa cama-de-gato, tendo apenas pendente a minha cabeça, pênis e testículos. Comecei a suar frio quando senti um animal peçonhento descendo pelo meu braço direito, ou seria o esquerdo? Tentei controlar a minha respiração, procurando respirar o mínimo possível, fazendo-me de morto para que o animal segui-se seu rumo sem me morder. Funcionou! Pois senti o animal descendo sutilmente por uma das minhas pernas.
Eu não tinha noção nenhuma de onde eu estava, me sentia como se tivesse flutuando dentro de uma bolha, apesar de sentir os meus músculos sendo rasgados por dentro. Uma rajada de vento tocou o meu SER. O Uwishin rompeu o silêncio da cabana dizendo que eu deveria a partir daquele momento contactar Arutam, mas antes de encontra-lo eu devia fazer por merece-lo, pois só assim eu me tornaria um Achuar (Guerreiro) Charrúa. O silêncio voltou a imperar naquela “grande noite”. Eu não sentia mais a minha respiração, mas sabia que continuava vivo, pois estava consciente de que estava amarrado numa diminuta cabana na selva.
Como um toque de mágica, meus olhos foram abertos. Antes eles tivessem permanecido fechado, pois a imagem de uma bocarra com uma língua bifurcada a minha frente pronta para me engolir não era nada agradável. Senti ser engolido pela imensa Anaconda num só golpe. Meus ossos eram triturados dentro do seu corpo, deixando-me a sensação de ser sido transformado em pó. Tudo parou! Não havia nenhum movimento do lado de dentro ou fora durante algum tempo, mas de repente senti um repuxão e senti meu corpo, ou o que restava dele, sendo jogado de um lado para o outro.
Vi a barriga da Anaconda sendo rasgada, e em seguida surgiu a face de uma Harpia gigante, não senti medo ao olhar para aqueles olhos castanhos. Estiquei o meu braço e toquei a cabeça do animal que sumiu, surgindo em seu lugar um Achuar ancião que falou que estava ali para me proteger e dar forças. Apanhando meu corpo, jogou-o em seus ombros e me levou a um jardim, que ele disse se chamar “Jardim dos Encantados”. Olhando para o céu pude ver a Lua Cheia em todo seu esplendor banhando-nos com seus raios, que cicatrizam por milagres as minhas feridas.
Olhando para o Achuar, o reconheci como um velho amigo que já havia aparecido no meu caminho em outras jornadas que realizei. A bandana azul na sua cabeça confirmava as minhas suspeitas. Respirando ainda com dificuldade perguntei-lhe quem ele era.
– Sou Arutam – ele me respondeu – , um espírito protetor que transmite uma força especial aos guerreiros Charruas, dando-lhe a garra necessária para superar todos os obstáculos que se apresentam no decorrer da sua vida. Sou aquele que te protegeu em todas as suas iniciações e o auxiliou a superar todas as dores que passou até hoje, como também aquele que irá continuar lhe ajudando a seguir adiante sempre. Faço parte de uma realidade distinta a dos seres humanos, sou um espírito que não pode ser visto com os olhos, nem se pode escutar minhas palavras com os ouvidos. Não tenho um corpo humano. Só posso ser visto por aqueles que já morreram.
Será possível que estou morto? – Eu pensei.
Lendo minha mente, ele riu e disse que eu sabia que morte ele estava se referindo e continuo-o:
– É impossível explicar a minha origem. Aqueles que conseguem me ver, recebem um poder. Poder este que estará presente com você até o momento em que seu espírito deixar este corpo carnal em meio a tempestades e relâmpagos, transformando-se em um verdadeiro Arutan que viverá eternamente vagando com os ventos e que em algum tempo estará presente no corpo das futuras gerações.
Fez uma pequena pausa, enquanto eu analisava as suas palavras.
– Na realidade você ainda não é um Arutam. Arutam é um ser onisciente, onipotente e onipresente, estando em todas os lugares. Arutam é um realidade de um ser vivo e existente, sua natureza é muito distinta a do ser humano, a sabedoria deste Ser sempre esta ligada a nossa realidade, seus poderes são bons e sua força é indispensável para corrigir as más condutas. Como você pode ver, Arutam não é um ser corpóreo, sua natureza é de difícil descrição, portanto para demonstrar sua existência ele se manifesta de diversas maneiras na forma de objetos, pedras, minerais, plantas e animais.
Dito isto ele me abraçou e nos integramos num só corpo que se transformou num lindo Jaguar Azul Crepuscular. Escutei sua voz dizendo: “Somos um, fazemos parte de uma energia única e sempre seguiremos assim.” Estas foram as últimas palavras que escutei e senti no meu Ser, antes de desmaiar.
Quando acordei, senti o peso do meu corpo que continuava amarrado dentro da pequena cabana. O calor era intenso, eu sabia que não estava sozinho e tive as minhas suspeitas confirmadas quando escutei passos. As cordas foram cortadas e eu caí no chão pesadamente sem forças para me manter em pé, tendo em minha mão direita uma bandana azul com pintas negras. Retiraram a venda dos meus olhos e em seguida me levaram numa rede até a cachoeira, jogando-me na água gélida. O choque térmico me trouxe de volta a realidade, dando-me forças para lutar contra a correnteza que me arrastava. Apesar das dores musculares e de câimbras nas pernas, consegui nadar até a margem onde fui recebido com grande aclamação pelos guerreiros da tribo que se encontrava me esperando para abraçar-me e cumprimentar-me por ter me tornado um igual a eles, um Guerreiro Charrua.
Wagner Frota