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Tiri

Sararumá ou Aymá Sunhé, gênio do mal, incendiou a terra não escapando senão um homem que por prevenção meteu-se em um buraco com alimentos para alguns dias. Para ver se o incêndio continuava, punha para fora do buraco uma vara, que durante dois dias voltava queimada, porém no terceiro dia voltou sem ser queimada e fria. Vendo o fim do incêndio, saiu do buraco e viu que a terra estava nua. Sem abrigo e sem alimento, vagava, quando encontrou Sararumá, que lhe disse:

– Fui eu o causador de todo esse mal, mas como tenho pena de ti, toma esse punhado de semente e as plante.

De repente apareceu um bosque, como que por encanto, com o que era necessário para a alimentação humana.

Depois, sem que se saiba como, este homem tinha consigo uma bela mulher da qual teve muitos filhos e um filha.

Na idade das paixões a filha corria tristemente dentro da floresta, chorando o seu isolamento, dando de cara com uma bela árvore, o Ulé, da qual se apaixonou, transformando-se esta em homem com o qual ela passava as noites, desaparecendo ao raiar do dia.

Revelando tudo a sua mãe, esta aconselhou-lhe que o amarrasse. Seguindo o conselho da mãe, Ulé foi preso, e prometendo casar-se, foi solto.

No gozo de uma felicidade perfeita estava, quando, um dia, indo ele caçar, não voltou, por ter sido morto por uma onça. Indo ela á sua procura, soube, pelos irmãos, da desgraça e, levada por eles foi ver o seu corpo. Encontrando os pedaços ensangüentados, espalhados, uniu-os para ver sua forma mais uma vez.

Contemplava-o, quando ressuscitando ele disse:

– Parece que dormi além da conta.

Voltavam alegre pela trilha, quando Ulé, tendo sede, foi a um riacho beber água e, vendo a sua figura refletida, notou que faltava um pedaço do seu rosto, e para não aparecer mais a sua mulher desfigurado, deixou-a e dela se despediu, dizendo que voltasse só, mas que nunca virasse o rosto para trás durante o caminho, fosse qual fosse o barulho que ouvisse atrás de si.

Durante a volta ouviu diversas vezes ruídos atrás de si, mas não fez caso; porém, em uma ocasião, ouvindo uma folha que caía, voltou-se, o que foi o bastante para perder o caminho e extraviar-se pelo mato. Errava de um lado para outro sem encontrar o caminho, quando foi parar na casa da mãe das onças. Esta a recebeu amorosamente; porém, vendo que seus filhos, quando voltassem, a comeriam, mandou que ela se escondesse.

Voltando os filhos, sentiram que havia gente estranha em casa e afinal descobriram a moça. Iam come-la, porém a mão não deixou.

Obrigaram-na, então, a catar-lhes as formigas que tinham no corpo e a come-las. Apesar do medo, não pôde comer as formigas, pelo que a mãe lhe deu algumas sementes de cuieira, para que iludindo, pusesse fora as formigas e comesse as sementes. Assim ela iludiu três filhos da onça, porém o quarto viu a esperteza da moça e, furioso, lançou-se sobre ela, matou-a e tirou do seu ventre o filho de Ulé que estava em seu ventre.

A mãe, tendo pelo filho a mesma que tivera da mãe, meteu a criança num pote, para cozinhar, porém tirou-a, metendo nele outra coisa e assim iludiu seu filho.

Ás ocultas e aos cuidados da velha onça, o menino cresceu e tornou-se homem. Chamava-se Tiri.

Um dia ela disse a Tiri que uma paca lhe tinha comido todas as abóboras. Ele foi para a upera e, quando apareceu o animal, o flechou, mas ta ruim foi sua pontaria que a flecha apenas arrancou a cauda, por isso desde essa data esse roedor ficou sem rabo.

A paca, ferida, olhou para ele e disse:

– Tu vives em harmonia com os assassinos de tua mãe, por que será que queres me matar quando não lhe fiz mal algum?

Tiri pediu a paca que lhe explicasse o que ela queria dizer com aquilo, pois para ele não passava de uma grande mentira.

A paca, levando-o até sua toca, disse-lhe que as onças tinham matado seu pai e a sua mãe e que, tendo descoberto que ele vivia, queriam escraviza-lo.

Furioso Tiri, depois de ouvir as revelações da paca, foi esperar as onças e, quando elas voltavam da caça, matou três, com suas flechas. A quarta, ferida, escapou, e subindo uma árvore, exclamou:

– Árvores, palmeiras, favoreçam-me!…Sol, lua e estrelas, salvem-me!

A lua, atendendo ao seu pedido, ocultou-se e, desde então, as onças são noturnas e estão representadas na lua.

Tiri tinha dentro de si um poder sobrenatural.

Vendo a mãe onça só, sem ter quem para ela trabalhasse, fez num instante um grande roçado com plantações.

Aborrecendo-se de viver sozinho, e senhor da natureza, tendo um dia dado uma topada que lhe arrancou a unha do dedão, meteu esta no oco do pau causador do desastre. Logo depois ouviu falar atrás de si e viu um homem que se tinha formado da unha. Tiri então deu-lhe o nome de Karu.

Daí em diante se uniram em boa harmonia, sendo Karu seu confidente. Aconteceu, porém, que sendo eles, um dia convidados por um certo pássaro para almoçar na casa dele, ofereceu-lhes um vaso cheio de chicha, que nunca se esvaziava, por mais que bebessem, e dando Titi com ele por terra, saiu líquido em tanta abundância que inundou a terra e matou seu companheiro.

Depois de seca as terras, Tiri pegou os ossos de Karu e o ressuscitou.

Continuaram a viver sós, porém, aborrecidos, desejavam viver em companhias de outros homens, então se uniram as fêmeas de alguns animais. De cada uma nasceu um homem e uma mulher, porém como as mulheres nascessem com os olhos abaixo do peito, Tiri teve que muda-los para o lugar que hoje ocupam.

O filho de Karu morreu e por este foi enterrado.

Tiri, ao fim de algum tempo disse a Karu que fosse desenterrar seu filho, mas que não comesse. Karu cumpriu a ordem de Tiri, e cavando a cova de seu filho, só encontrou as raízes de um pé de mandioca. Karu, achando-as bonitas, comeu-as, o que fez com que se ouvisse grande estrondo.

Tiri então disse:

– Karu desobedeceu-me e comeu o seu filho, e para puni-lo, tanto ele como todos os homens serão mortais, sujeitos ao trabalho e ao sofrimento.

Tempos depois, Tiri, sacudindo uma árvore, caiu dela um pato, que Tiri ordenou a Karu que cozinhasse e comesse.

Obedecendo Karu, Tiri lhe disse:

– Este pato era seu filho e tu o comeste.

Karu desgostou-se de tal modo, que vomitou tudo quanto comera. Saíram então da sua boca papagaios, tucanos e outros pássaros.

Tiri e Karu foram visitar a mãe da onça, porém, vendo que estava com os beiços ensangüentados, Tiri julgou que ela tinha devorado algum homem.

Ameaçou mata-la, ela pediu que a perdoasse, porque revelaria tudo.

– É verdade que comi uma pessoa, porém ela já estava morta por ter sido mordida por uma cobra, que vive num buraco.

Indicou o lugar.

Essa cobra comia todos que apareciam nesse lugar.

Tiri disse à mãe das onças:

– Tu, de hoje em diante, só comeras o que os outros matarem, e assim acontecerá aos de tua raça. Transformou-a então em urubu.

Por essa razão o urubu tem a cabeça pelada.

Tiri ordenou a um Uacauan (pequeno falcão) que matasse e comesse a cobra.

Depois disso saíram do buraco da cobra os Incas, os Mansinos, os Chiriguanos e outras nações.

Foi tal a quantidade de gente que saiu que Tiri, amedrontando-se, tapou o buraco.

O buraco por onde saíram os povos que encheram a terra existe perto de uma grande rocha chamada Mamoré, do qual ninguém se aproxima, por causa de uma grande cobra que guarda a entrada do buraco. Fica perto da confluência dos rios Sacta e Soré, nas nascentes do rio Mamoré.

Tiri disse então a essas nações:

– É preciso que se dividam e ocupem toda a terra e para isso vou lançar a discórdia entre vocês.

Imediatamente caiu uma chuva de flechas, com as quais todos se armaram.

Por muito tempo essas nações se bateram até que Tiri as pacificou, porém conservaram-se sempre separadas, odiando-se umas às outras.

Terminando sua missão, Tiri decidiu-se a procurar outro lugar e, para saber qual deveria ser, enviou um pássaro para o Oriente, que pouco tempo depois voltou, em parte depenado. Concluiu que o espaço da terra era pequeno. Mandou-o para o Norte, e aconteceu a mesma coisa, porém, mandando-o para o Poente, no fim de algum tempo, o pássaro voltou coberto de lindas penas. Para lá então dirigiu-se Tiri, para nunca mais voltar.