Lendas

Início » No Reino dos Urubus

No Reino dos Urubus

Antes que os Inkas reinassem, conta-se que no princípio Wiraccocha criou um mundo escuro e logo ordenou ao céu e a terra a criarem uma raça de gigantes. A estes eNo Reino dos Urubus

Tamapu partiu para caça naquela manhã, decidido a trazer um urubu. Dirigiu-se para a lagoa porque sabia que aquela ave de rapina gostava de lá para apanhar peixes. Escondeu-se atrás de uma árvore e esperou pacientemente. O urubu chegou e pôs-se a espreitar os peixes que preferia. Estava por tal forma absorvido que não ouviu Tamapu pegar na flecha e esticar o seu arco, e foi morto imediatamente. Tamapu estava muito orgulhoso, porque é difícil surpreender e atingir um urubu! Preparava-se para voltar à aldeia quando ouviu gemidos. Pareciam vir do pé de uma grande palmeira que se encontrava na beira da lagoa. Tamapu aproximou-se e viu uma maravilhosa jovem urubu. Decidiu leva-la também e ficar com ela. Sem deixar de soluçar, ela seguiu-o. De tempos em tempos, Tamapu olhava para trás para apreciar a bela jovem, que tinha um rosto e corpo de mulher e uma plumagem magnífica. Por que não casaria com ela? Era muito mais bela do que todas as jovens da sua aldeia. Contudo, mal avistou a sua cabana, pediu à jovem que o esperasse à beira do caminho e disse:

– Tenho medo que a minha mãe não te aceite. Primeiro tenho de falar com ela. Como te chamas?

– O meu nome deve ficar em segredo porque sou a filha do reio dos Urubus – respondeu ela. Eu esperarei por ti.

Tamapu foi procurar a mãe e explicou-lhe que tinha encontrado a filha do rei dos Urubus à beira da lagoa e que tinha trazido porque queria casar com ela.

– Vá busca-la – disse-lhe ela. – Eu aceito.

Entretanto, a filha do rei dos Urubus tinha arrancado todas as suas penas e tinha-as escondido no tronco de uma árvore morta. Tamapu encontrou-a ainda mais bela do que antes, e, muito feliz, voltou para a aldeia com ela.

Amavam-se muito, no entanto não eram felizes. A mãe de Tamapu aceitara aquele casamento, mas tinha muitos ciúmes da nora. Não aceitava o lugar que ela ocupava no coração do filho. Em todas as ocasiões lhe fazia críticas. A vida tinha-se tornado impossível para o jovem casal.

Uma manhã, quando ia para a clareira tratar da sua horta Tamapu disse à mulher:

– Temos que ir morar em outro lugar. A minha mãe não se habitua a ver-me casado. Sempre te detestará e não quero ver-te sofrer, amo-te muito.

Muito comovida, a mulher respondeu-lhe:

– Segue-me, escondi as minhas asas naquela árvore que ali vês. Vou tornar a pô-las e vamos levantar vôo para o reinos dos Urubus. Tenho certeza de que lá seremos felizes.

Tornou a colar as asas com resina, depois pediu ao marido que se agarrasse aos seus ombros e levantou vôo.

Um pouco mais tarde, vendo que estava a chegar no reino do pai, disse-lhe:

– Fecha os olhos, estamos chegando. Eu lhe digo quando os poderá abrir.

Pousou ao pé de uma imensa escada que conduzia a um impressionante palácio. Era tão alto que não se avistava sequer sua torre. Subitamente, uma voz muito grave se fez ouvir, acompanhada de um trovão.

– Minha filha. Fizeste bem em vir acompanhada de teu marido. Trá-lo junto do meu trono, quero conhece-lo.

Decorreu um longo momento. O rei dos Urubus observava o genro em silêncio. Encarava-o sorrindo, mas havia mais ironia do que bondade naquele sorriso. Dir-se-ia que preparava uma cilada.

Bruscamente, disse:

– Aproxima-te e tira-me esse inseto que se meteu sob a garra do meu pé. Tem cuidado em não furar, sabes que são as fêmeas que se metem sob a pele para colocar seus ovos; se ferires ao tira-la, todos os ovos se espalharão sobre minha pele e corro o risco de ter uma grave infecção.

Tamapu sabia-o muito bem e tomou infinitas precauções, mas quando estava quase conseguindo, o rei mexeu a pata e Tamapu feriu o inseto.

– Serás castigado, eu tinha-o prevenido! – disse o rei com uma voz amarga. Na sua face, um meio sorriso desenhava duas rugas severas.

Tamapu foi espancado e abandonado na floresta. Ficou lá três dias e três noites. Já não tinha sequer força para gemer. Aproximou-se dele um rato:

– Eu vi tudo – disse ele -, estava atrás do respiradouro da cozinha do palácio. Sabes que o rei tem toda a espécie de cremes milagrosos para se tratar. Vou-lhe roubar um e vou-te curar. Não desesperes. Espera por mim. Não me demoro.

A lua acabava de aparecer quando o rato voltou. Tratou de Tamapu e deu-lhe de beber e comer.

Entretanto, o rei tinha mandado a filha à floresta para ver se Tamapu tinha morrido. Quando ela voltou ao palácio e disse ao pai que o tinha visto com boa saúde a conversar com um rato, um trovão ribombou. A mão do rei iluminou-se como um relâmpago de trovoada e disse:

– Volta a floresta e diz ao teu marido que se ele quiser ficar no meu reino para viver contigo, precisa vencer outra prova: deverá subir ao cimo da árvore que se encontra à entrada do meu reino, para apanhar o maior de seus frutos e traze-lo até a mim.

Tamapu fez o que o rei lhe pediu. Contudo a árvore era tão alta que quase não teve forças para atingir o cimo dela. A sua vontade de vencer sobrepôs-se ao seu cansaço e conseguiu. Ia descer com o fruto pedido pelo rei, quando a árvore desatou a rir e agitou-se em todos os sentidos. Tamapu perdeu o equilíbrio, largou o fruto e caiu ao pé da árvore. A mulher dele estava lá, mas não a viu quando perdeu os sentidos ao tocar o solo. Ajoelhou-se perto dele e cobriu-o de folhas. Depois voltou ao palácio.

– Vamos deixa-lo três dias e três noites sob esse manto de folhas e depois irás ver em que estado se encontra – disse o rei.

Quando chegou o dia de retirar as folhas que cobriam o seu marido, a filha do rei não podia acreditar no que se via. Tamapu já não estava lá. Correu pela floresta, chamando por ele, mas ninguém lhe respondeu. Voltou para o palácio muito triste. De súbito, quando passava por uma pequena casa que parecia abandonada, ouviu uma voz que ela conhecia bem: era Tamapu que falava com um soberbo papagaio. Apressou-se a anunciar a boa notícia ao pai, mas este não pareceu partilhar sua alegria:

– Nada de precipitações, minha filha! Ainda não venceu todas as provas que eu imaginei para ele. Agora ele vai ter que esculpir um trono à minha imagem.

– Mas é impossível – disse ela soluçando – ,ele nunca viu o seu rosto. Como queres que ele o esculpas?

– Eu simplesmente assim desejo – falou o rei, fazendo tremer as paredes do palácio.

Quando a jovem anunciou ao marido aquela nova prova, o papagaio, que havia tornado seu amigo, disse-lhes:

– Conheço alguém que vai poder-vos ajudar. É o pica-pau. Sabe trabalhar a madeira maravilhosamente e, de um golpe de asa, iremos ver com o que se parece o rei! Mas é preciso não lhe dizer nada, não deve saber que vamos ajudar o vosso marido.

Aliviada, a filha do rei voltou ao palácio. Três dias depois, foi buscar o trono. Estava magnífico. Realizado num belo tronco, era exatamente igual ao rosto do terrível rei. Este último ficou muito surpreso. Perguntou a Tamapu se ele não tinha dons mágicos…Imaginou uma outra prova ainda mais difícil de vencer.

– Restam-lhe mais duas provas a ultrapassar – disse o rei. – Vai abrir uma clareira no local que eu lhe indicar.

Evidentemente que o rei dos Urubus escolhera o lugar da floresta onde as árvores eram muito difíceis de arrancar, onde havia animais perigosos a evitar…Ainda dessa vez não deu a Tamapu mais do que três dias e três noites para conseguir.

Tamapu tinha aprendido a conhecer os animais da floresta por ocasião de todas aquelas provas que acabava de passar e tinha dado conta de que, freqüentemente, eram bem mais generosos e fiéis do que muitos homens. Olhou a sua volta e, vendo uma enorme formiga, disse-lhe:

– Sei que teu povo é trabalhador e corajosos e que é capaz dos trabalhos mais duros. Aceitarias me ajudar?

– Decerto – respondeu-lhe a formiga. – Primeiro porque tu o mereces, depois porque não quero que esse horrível tirano tenha a satisfação de te ver falhar. – E chamou pelas irmãs. Um verdadeiro exército de enormes formigas invadiu o lugar designado pelo rei dos urubus para que Tamapu abrisse lá a clareira. Não lhes foi preciso muito tempo para realizar sua tarefa. Mais uma prova e poderia enfim viver com sua mulher!

– Agora – disse-lhe esta -, o meu pai quer que tu vás até o centro da clareira e que lá esperes as instruções dele.

Tamapu obedeceu, mas bruscamente compreendeu qual ia ser a última prova. Uma nuvem de carcarás e de urubus sobrevoou o espaço que o cercava lançando brasas quentes. Num instante, o incêndio se alastrou. Tamapu estava cercado! Refugiou-se num buraco escuro que avistou no meio das chamas. Era a casa de uma aranha gigante. Primeiro teve muito medo, mas, rapidamente, ela tranqüilizou-o:

– Não tenhas medo de mim. Não te quero nenhum mal. Pelo contrário, vou ajudar-te. Em primeiro lugar, escuta-me: Por que és tão ingênuo? Ainda não compreendeste que o teu sogro quer tua morte? Nunca aceitará que vivas com a filha dele no seu reino! Matar-te-á quaisquer que sejam as provas que tu venceres. Acredita em mim. Não tem senão uma forma de sair delas. Deixa-me fazer um casulo. Entrarás nele e tecerei uma corda comprida que fará descer o casulo à terra. Quando estiveres tocado no solo, puxa duas vezes pela corda e eu a soltarei.

Tamapu não tinha mais qualquer esperança de viver por fim com aquela. Escolheu pois salvar sua vida seguindo os conselhos da aranha e pôde chegar à terra, são e salvo.

Contudo, durante muitos anos, cada vez que via brilhar ao sol uma teia de aranha, sonhará que tem a forma de uma grande escada gigante e, em sonhos, subirá suas traves para ir encontrar nos céus, no reino dos urubus, a filha do rei.