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Como a Noite surgiu

Naquela época longínqua, a noite não existia sobre a Mãe Terra. Escondida no fundo do rio, dormia no reino de Satchamama a Grande Cobra, conhecida também no Amazonas como Anaconda. Só o xamã a tinha visto em sonhos, numa noite em que chamara as almas dos mortos. Ninguém sabia com o que ela se parecia porque não pertencia ao mundo dos vivos.

Os animais também não existiam. Ainda não tinham sido criados, mas todos os objetos falavam como homens. Os brinquedos falavam às crianças e as flechas aos guerreiros.

Um dia a filha de Satchamama, o rei do grande rio escuro, abandonou o seu reino para vir viver na floresta. Tinha aceitado desposar Takuña, o filho mais velho do chefe da aldeia. Takuña tinha três fiéis criados que os seguiam por toda parte. No dia do seu casamento pediu-lhes que o deixassem só com a mulher. Quando foram para a caça, Takuña chamou a esposa e disse-lhe:

– Vem dormir perto de mim.

– É impossível, – respondeu ela – a noite ainda não chegou.

O jovem, estupefato com aquela resposta, exclamou:

– A noite? O que é? Isso não existe!

– Existe, – respondeu ela – o meu pai tem-na prisioneira no fundo do grande rio escuro onde tu me encontraste. Se quiseres, pede aos teus criados que a busquem, mas em nenhum caso devem saber o que transportam. Se desobedecerem, ficarão enfeitiçados para sempre.

O jovem chamou os criados e disse-lhes:

– Vão os três ao grande rio no reino de Satchamama. Digam-lhe que a filha reclama a noz grande de tucumã que ele guarda religiosamente desde o princípio dos tempos.

Ouvindo o nome de Satchamama, os três criados puseram-se a tremer. Nunca alguém tinha ousado a ir ao fundo das águas escurar que atravessam o inferno verde. Aterrorizados puseram-se a caminho. Naquele dia, todos os barulhos da floresta lhes pareciam inquietantes. A umidade do ar colava-lhes os cabelos. Tinham a sensação de que lhes faltavam ar. De tempos em tempos, olhavam na direção do cimo das árvores mais altas para divisarem um pouco do céu. A claridade os tranquilizavam, no coração daquela floresta tão densa que não permitia que se afastassem uns dos outros para não se perderem. Quando enfim chegaram ao reino de Satchamama, este deu-lhes a grande noz de tucumã com infinitas precauções e, com sua voz áspera e inquietante, fazendo assobiar todas as letras disse-lhes:

– Aqui está, tomem-na! Mas cuidado não a abram no caminho, senão a nossa vida acabará nesse mesmo instante.

Os três criados partiram muito intrigados com a mensagem de Satchamama. Que haveria dentro daquela noz colada pela resina? Tinham medo que noz albergasse um espírito, um daqueles que aparecem bruscamente numa curva do caminho para nos castigarem. A menos que se tratasse de um espírito bom, como aquele que vem em socorro dos doentes e daqueles que tem fome. Como sabê-lo? Era preciso abrir a noz, mas Satchamama tinha-os proibido.

Remavam sem uma palavra, intrigados com um barulho esquisito. Dentro da noz, qualquer coisa parecia cantar: “Tem-Tem-Tem-Tchi, Tem-Tem-Tem-Tchi, Tem-Tem-Tem-Tchi…”

Já remavam havia muito tempo quando um dos criados disse para os outros dois:

– Quero saber o que há dentro desta noz de tucumã. Vamos abri-la. Não falaremos a ninguém Vou fazer um buraquinho muito pequeno na resina aquecendo-a, enfiarei nele uma palha com que verei para o interior. Satchamama e sua filha nunca saberão.

– Não! Não! – responderam em coro os outros dois criados de Tukuña. – Satchamama proibiu-nos de o fazer. Disse mesmo que se o fizéssemos a nossa vida se acabaria nesse instante.

Tinham a impressão de ouvir a voz áspera e ameaçadora de Satchamama em seus ouvidos. Entre os troncos das árvores que bordavam a margem, milhares de olhos pareciam espreitá-los e seguia-os um estranho clarão até o fundo do rio escuro, desde que tinham deixado o reino de Satchamama.

Continuavam a remar sem uma palavra. “Tem-Tem-Tem-Tchi”, dizia noz no silêncio da canoa, “Tem-Tem-Tem-Tchi, Tem-Tem-Tem-Tchi…”

Mas o que haverá dentro desta noz? Aquele barulho estranho e lancinante fascinava-os cada vez mais. A sua curiosidade tornara-se mais forte de que seu medo. Mesmo aqueles que tinham recusado abrir a noz já não eram tão categóricos. No fundo, talvez fosse um tesouro que eles transportavam, e Satchamama tinha-lhes metido medo para não o roubarem. Ou então, um espírito benfazejo que fazia milagres, e graças ao qual se tornariam senhores da aldeia; até mesmo o xamã teriam de lhes obedecer se a sua nova magia se revelasse mais forte do que a dele! A tentação era grande e a curiosidade ainda mais forte.

Quando pararam para descansar um pouco e comer alguma coisa, acenderam o lume que levavam sempre com eles, na canoa, e começaram a grelhar os peixes que haviam pescado antes da partida. Não conseguiam desviar o olhar daquela noz que não cessava de lhes cantar: “Tem-Tem-Tem-Tchi, Tem-Tem-Tem-Tchi, Tem-Tem-Tem-Tchi…”

Subitamente, não podendo resistir mais tempo à tentação, um deles, o mais novo, pegou bruscamente na noz e aproximou-a do lume. Pouco a pouco, a resina começou a derreter, soltando um cheiro insuportável. De repente, foram salpicados por um jato de resina que lhes queimou os braços. Depois, num segundo tudo escureceu. As árvores que margeavam a estrada desapareceram como se uma imensa nuvem negra tivesse caído sobre a terra e as tivesse engolido. Aquela nuvem tinha saído da noz.

Sobre as brasas ainda quentes, única luz daquele novo mundo das trevas, a noz de tucumã jazia, aberta e vazia.

Durante um longo momento, ficaram imóveis e mudos. Olhavam-se como para provar a eles mesmos que ainda estavam vivos. Não ousavam mexer-se com medo de apagar aquele lume que pareceria mantê-los no mundo dos vivos. Ao cabo de um longo momento, o mais velho dos três ousou romper o silêncio e disse:

– Estamos perdidos! A filha de Satchamama já deve saber que abrimos a noz de tucumã e que desobedecemos ao seu pai. Vai enfeitiçar-nos. A nossa vida acaba de chegar ao fim. Voltemos à aldeia para pedir perdão.

Com efeito, na aldeia, a filha de Satchamama disse para o marido:

– Os teus criados abriram a noz mágica. Deixaram que a noite fugisse. Vamos dormir à espera da manhã.

E estendeu-se junto do marido.

Enquanto dormiam, todas as coisas da floresta se metamorfosearam: as pedras e os pedaços de madeira tornaram-se peixes e patos; o cesto que a jovem mulher tinha feito na véspera transformou-se num jaguar; a canoa e o pescador transformaram-se em patos. As pedras e os pedaços de madeira que não tinham sido metamorfoseados deixaram de falar e ficaram inanimados. Os índios não compreendiam. O seu mundo já não era mais o mesmo. A floresta estava agora cheia de barulhos estranhos que eles não conheciam.

Só a filha de Satchamama não estava inquieta: aquele mundo era a imagem do seu…Quando acordou disse ao marido, vendo brilhar a estrela da manhã:

– Olha para aquela maravilhosa cintilação na noite. Anuncia-nos que a alvorada está para nascer. Vou separar o dia da noite.

Saiu da cabana para apanhar folhas, flores, sementes, cortiça das árvores e arbustos. Numa pequena talha pôs argila quase branca. De volta à aldeia, ajoelhou-se sobre uma esteira e instalou os seus potezinhos a sua volta. Pegou num almofariz e pôs-se a pisar tudo o que tinha apanhado na floresta. Depois fez misturas para obter diferentes azuis, verdes, mais claros ou mais escuros. O urucu deu-lhe um vermelho muito belo e o jenipapo um negro profundo que lhe agradava muito. Estava bastante orgulhosa das suas tonalidades. Então enrolou um fio à volta do dedo e disse-lhe:

– Tu será o cujubu, o pássaro que anuncia o dia e pintou-lhe a cabeça de branco com argila, e as penas de vermelho com a massa de urucu que tinha acabado de fazer. Depois deixou-o levantar vôo, dizendo-lhe:

– Vai, serás tu que cantarás todas as manhãs quando o dia nascer.

Depois, enrolou mais um fio à volta do seu dedo e disse:

– Tu serás o Iñambu, o pássaro que anuncia a noite.

Pegou um potezinho que continuava com cinzas. Tinha-as apanhado ao atravessar a clareira que seu marido havia preparado para que pudessem fazer as plantações. Salpicou de cinzas o pássaro que acabava de criar e deixou-o levantar vôo, dizendo:

– Vai, és tu que cantarás todas as noites quando cair a noite.

E o pássaro levantou vôo, cantando uma melodia doce e triste. Depois, olhou para os seus potes de todas as cores e disse:

– Vou dançar e cantar todas estas cores da floresta. Vou criar todas as espécies de pássaros, tão belos como as flores e os frutos.

Começou pela arara, e continuou com o tucano, manaquim entre outros até ter criado dezenas de pássaros.

Subitamente, a mata silenciou. Três homens chegavam a aldeia, com o rosto escondido entre as mãos. Eram os três criados de Takuña que voltavam para pedir perdão ao seu amo. Os pássaros tinham sentido que um drama se preparava e calaram-se.

– Haveis desobedecido a Satchamama! – disse Takuña. Haveis aberto a noz de tucumã e libertado a noite que absorve todas as coisas. Fostes irresponsáveis. A filha de Satchamama vai transforma-los em macacos e sereis condenados a saltar de tronco em tronco até o fim dos tempos.

Hoje ainda, as tribos da Amazônia reconhecem-nos pela risca amarela que alguns macacos têm no ombro e que lembra a resina que salpicou os três criados quando haviam aberto a noz de tucumã…