“No cume da montanha está suspensa uma nuvem, e meu coração está suspenso acima dela”. Thálya Iktomi
Há muito tempo eu havia prometido a mim mesmo que escalaria o Kilimanjaro, realizando uma Busca da Visão no velho estilo Lakota, subindo à colina em completo jejum, porém o Kilimanjaro não é uma colina e sim uma montanha solitária na planície africana. O seu formato cônico, fruto de uma fusão das lavas de três vulcões pode ser vista a 170 km de distância. Ela localiza-se na Tanzânia e encontra-se exatamente na linha do Equador possuindo cinco tipos de vegetação. O sopé está coberto por uma floresta tropical, depois existe uma um floresta de altitude, savana de altitude, um deserto vulcânico e no seu cume existe uma geleira. Os tipos de vegetação são fáceis de identificar, pois em cada uma delas crescem plantas diferentes das outras zonas. Ao fazer o percurso até o cume parece que estamos saindo do centro do planeta até o Pólo.
Só para variar, mais uma vez para desafiar meus limites, escolhi a rota mais difícil conhecida pelo nome de Machame. Hamisi e eu começamos nossa caminhada às seis da manhã. Apesar de ainda ser primavera, o calor de 25 graus a este horário já anunciava que o dia seria muito quente, mas para minha surpresa a medida que subíamos floresta a dentro, a temperatura diminuiu para 15 graus e começou a chover forte. Na medida em que caminhávamos por entre árvores altíssimas, nossa trilha transformava-se em lama, fazendo com que nossa caminhada ficasse cada minuto mais difícil, principalmente num trecho de subida íngreme com mais de 1.100 metros com o ângulo de quase 45 graus.
A cada passo dado, a floresta se fechava a nossa volta. Por sorte a chuva passou, as raízes das árvores seguravam a terra e formavam pequenos degraus, que me fizeram lembrar do Caminho Inka quando escalei a Montanha Ausangate em 2000 na altitude de 4.200 metros. Durante este percurso, era possível ver alguns macacos que se aproximam curiosamente, como também inúmeros pássaros. Fora este animais, o que mais me chamou atenção foi um leopardo que pudemos ver ao longe e que parecia muito mais interessado de procurar uma caça, do que com a nossa presença… ainda bem! Finalmente, após 15 km percorridos neste primeiro dia, chegamos a Machame a 3 mil metros de altura.
Tomei diversos copos de chá para me esquentar, pois era o único alimento junto com a água que eu me permitira durante minha peregrinação. Após me agasalhar e fazer minha cama ao lado do fogo no centro da cabana com uma arquitetura interessante, dormi pesadamente.
Pela manhã tomei mais algumas canecas de chá e antes das sete saímos. Subimos uma ladeira escorregadia que nos fazia derrapar, mas minha bota pareciam garras e não me deixou cair. Lá pelas oito horas, notei que a paisagem ganhou outras cores e contornos, o terreno aos poucos ficou árido e firme, deixávamos a floresta tipicamente tropical e passamos para a tropical de altitude. Hamisi por diversas vezes tocou o meu ombro e apontou para o céu e também para o alto das poucas árvores, mostrando-me abutres e alguns falcões que surgiam rapidamente. A cor verde escura da mata transformou-se em verde claro com a abundância de capim que agora nos cercava.
A tarde, pouco antes de chegar até nosso segundo acampamento em Shira, Hamisi apontou mais uma vez para cima, porém desta vez, eu não vi nenhum animal de rapina e sim o magnífico pico nevado do Kilimanjaro. Hamisi insistiu para que eu comesse algo antes de dormir, mas eu disse que não tinha fome e que o chá já era suficiente. Ele respeitou minha decisão e informou que iríamos dormir um pouco mais esta noite para que nos aclimatássemos com a altitude, pois a jornada no próximo dia não seria nada fácil.
A manhã do terceiro dia o céu estava claro e sem nuvens. Levantamos acampamento e seguimos subindo calmamente para nos aclimatarmos. Na medida em que subimos a montanha, a quantidade de oxigênio no ar diminuía e nosso organismo passava por uma transformação no seu metabolismo para aumentar a quantidade de glóbulos vermelhos, que conduzem o oxigênio no sangue. A respiração aumentava minha freqüência cardíaca aumentava e o coração batia mais forte para captar o máximo de oxigênio. Silenciosamente enquanto caminhava, eu agradecia ao Grande Espírito por ter me preparado fisicamente durante todo ano para fazer a jornada que estava empreendendo na maior montanha da África. Durante todo dia procuramos nos manter em completo silêncio e falando somente o necessário. Na torre Lava, a 4.581 metros de altitude paramos para descansar e neste momento, não pude resistir e comi um pedaço de frango que me foi oferecido por Hamisi, era realmente necessário que eu me alimenta-se pois não conseguiria completar a jornada senão o fizesse. Enquanto descansávamos, Hamisi contou que descendia de moçambicanos e sabia um pouco de português que havia aprendido com seu pai. Com 25 anos, este jovem guia já havia subido ao Kilimanjaro mais de 300 vezes.
Ao final do dia, chegamos a Barranco a 3.875 metros e logo após o jantar e canecas de chá dormimos como verdadeiros anjos.
O quarto dia foi de pura aclimatação, sendo mais fácil do que o dia anterior. Contornamos a montanha, ganhando pouco a pouco altitude e nos adaptando ao clima, procurando cada vez mais oxigenar nosso sangue. Antes de chegarmos ao nosso acampamento em Barafu, entramos na região das lobélias, árvore de 3 metros típica do Kilimanjaro. Está árvore é uma verdadeira guerreira por sobreviver a uma altitude acima dos 4 mil metros. Ao chegarmos em Barafu a 4.600 metros, passamos a caminhar pela zona alpina.
Assim que chegamos ao acampamento, por volta das 16 horas, comemos e bebemos muito chá para afastar o frio de 5 graus.
Eu sonhava com dançarinas num belo oásis, quando Hamisi me acordou as meia-noite e meia para que prosseguíssemos em nossa jornada rumo ao cume da montanha. Perguntei a Hamisi porque tinhámos de ir tão cedo. Ele respondeu que necessitávamos chegar ao cume do sol nascer para evitar deslizamento de terra, pois havia a possibilidade de cairmos cratera abaixo.
Começamos a nossa subida pelo deserto vulcânico a uma da manhã, após uma rodada de chá quente. Segundo Hamisi a temperatura estava em torno de – 2 graus… Uau! Que frio!!! Eu estava vestido com dois agasalhos, havia colocado minhas luvas, um gorro que Hamisi me deu e óculos que protegia nossos olhos do vento cortante.
Nosso percurso até o cume seria de quase 5 km num desnível de 1.300 metros que deveríamos vencer antes do Pai-Sol surgir.
Por sorte a Mama África parecia estar do nosso lado, apesar do vento cortante, já que a lua cheia iluminava nosso caminho. A primeira hora de jornada foi tranquila, fazendo com que eu silenciosamente agradecesse a Mãe Natureza, mas de repente a temperatura caiu vertiginosamente fazendo com que fizéssemos uma pequena parada para nos agasalharmos ainda mais. Para piorar a minha situação, comecei a sentir uma fisgada na minha perna direita fazendo com que eu caminhasse mais lentamente. Hamisi vendo minha situação, disse para eu caminhar sobre suas pegadas e assim o fiz. A cada passo dado, era uma vitória.
Eu não ousava olhar para o alto do cume e pacientemente caminhava pisando as pegadas de Hamisi em câmara lenta. O silêncio nos envolvia de forma fantasmagórica.
Ao atingirmos ao quinto tipo de vegetação, fizemos uma pequena parada para comer uma barra de chocolate e beber água, para nos dar forças de subir pela geleira. Após descansarmos um pouco, seguimos adiante. A temperatura voltou a cair. Passamos a pisar com maior dificuldade devido ao aclive que se apresentou a nossa frente. Hamisi fez com que andássemos em zig-zag por cima dos cascalhos escorregadios. As vêzes parecia que não saíamos do lugar.
Além da dor continua na perna, comecei a ter dor de garganta e a sentir falta de ar, mas mesmo assim continuei adiante não me importando com a chegada e sim com a caminhada. Todos os obstáculos não me fizeram desistir da escalada que terminou sendo uma grande aula de como caminhar com paixão na Natureza. Enquanto os minutos passavam, continuamos contornando as pedras e nos equilibrar sobre o cascalho do vulcão que felizmente encontrava-se adormecido. Aos poucos fui me sentido adormecido, como se estivesse anestesiado e me via andando na montanha segurando meu bastão que me ajudava a dar cada passo. Neste momento eu era uma estrela que fazia sua jornada rumo a lua. Dum, dum, dum… A batida forte do meu coração me trouxe de volta ao meu corpo que agora não tinha mais dores.
Finalmente chegamos a borda da cratera, restando apenas 210 metros para chegarmos ao cume coberto de neve. Eu não tinha mais forças para subir e não conseguia equilibrar-me, mas mesmo assim eu repetia para mim mesmo que conseguiria vencer os 210 metros finais. Olhei para lua cheia que havia me acompanhado durante toda a jornada e vi desenhado em sua face a imagem do puma, neste momento respirei profundamente e comecei a subir graciosamente aquele terreno até o topo, como se fosse meu amigo Pata Marrom. Às 7 horas da manhã, quando os primeiros raios do sol surgiram, conseguimos chegar ao pico Uhuru a 5.896 metros de altitude, conhecido como o teto da Mama África.
Naquele momento, pude contemplar toda obra do Criador ao ver a faixa carmim surgindo no horizonte, por cima das nuvens, para em seguida transformar-se numa linha amarela incandescente misturando-se ao azul do céu. Neste momento, apanhei a minha mochila abrindo-a em seguida. Tirei de dentro uma pequena caixa que guardavam as cinzas de Thálya e arremessei suas cinzas ao vento, cumprindo a minha promessa de uni-lá a Montanha Sagrada. Este pequeno gesto de Amor fez com que eu fechasse mais um ciclo na Roda da Vida, deixando para trás meu período de ascetismo e começando do zero mais uma jornada pela Roda da Vida caminhando para onde o Vento me levar.
Munay,
Wagner Frota, “Jaguar Dourado” (Xamanista e Membro-fundador do Clã Lobos do Cerrado)